Não aceitamos ser coisificados

“Nós não queremos a guerra, somos pela paz e pela democracia”, dizem uns de um lado. “Estou disponível a sentar e conversar para resolver o problema da paz, pode ser agora mesmo”, diz o outro lado.
Lúcido, dizia Rubem Alves, ” a realidade não se move por intenções, desejos, tristezas e esperanças”. Move-se por atitudes.
O discurso distancia-se da prática. Acompanhando os media, assiste-se, embora pondere a possibilidade de serem feitos à luz de certa criatividade, como disse Mia Couto:
“Os jornais são mais criativos do que qualquer escritor”, notícias de confrontos armados, de ameaças. Uns montam quartéis e polícia privada, outros compram mais armas e exibem.
Creio nunca ter-se usado tanto o termo diálogo de forma tão vazia como nos últimos tempos. Ou será que estou equivocado? Talvez tenha surgido um novo conceito, o de diálogo-monologado. Em que consiste? Consiste numa conversa em que uma das partes diz as suas imposições e a outra, em resposta, ignora por completo para fazer o mesmo.
O fruto desse diálogo-monologado é a discórdia; é o distanciamento para uma distância ainda mais distante que a distância de anterior.
No meio desse distanciamento estamos nós, “coisificados”, “insignificados”, transformados em nada. Estamos feitos a corda daquela brincadeira infantil do puxa-puxa. Dois grupos de pessoas, posicionados um contra o outro, têm uma corda, e, no meio, há uma cova. Ganha quem tiver mais força para puxar o outro grupo para a cova. Nisso, a corda, sem voz, é que sofre a pressão, no risco de rebentar e ambos os grupos caírem de costas com o seu pedaço de corda. Voltar a amarrar é outro processo. Também, a corda não volta a ser a mesma! O que a une é um frágil nó.
A corda em questão seríamos nós. Porém, não nos vemos como corda e não queremos rebentar; não nos queremos desunir. De resto, o próprio hino nacional tem nos seus versos “milhões de braços/ uma só força/ vamos vencer”. Somos pessoas, ainda posso recorrer ao hino para lembrar que pretendemos ser um “povo unido”. Aceitaríamos, não obstante as diferenças, lutar de um só lado.
Já que falei de braços, ocorreu-me outra brincadeira, mas de gente adulta, ou pelo menos próxima disso: a do braço de ferro. Dois homens diante de uma mesa, com braços postos nela forçam o braço um do outro, até que um vença, até que, com a sua força, ponha o braço do outro em baixo. Parece-me que eles, os que não são nós, estão nessa brincadeira. Mais uma vez, aí, somos coisificados, somos vistos como a mesa. Não nos vemos como mesa. Vemo-nos na mesa para comer o fruto do nosso trabalho, como no célebre quadro de Van Gogh “Os comedores de batatas”. Se nos deixarem trabalhar, claro!. Vemos na mesa o momento da refeição, todos juntos reflectindo sobre o hoje e perspectivando o amanhã, sonhando.
Essas brincadeiras de mau gosto podem conduzir-nos à ausência de país. Ausência que Rubem Alves conceptua como “palavra que faz com que as coisas desapareçam”, impondo em nós o que Maurice Blanchot considera “sentimento de ausência universal”.
O que nos importa, agora, não são as diferenças, são as semelhanças. Não é ser político ou ser povo, intelectual ou ignorante, bom ou mau, poeta ou louco, recorrendo a Freud que nos diz que a questão decisiva (…) é um acto de amor, mas antes disso é percebermos que somos moçambicanos. Moçambique somos nós, juntos, sem coisificação de alguns pelos outros.

De Leonel Matusse Jr.

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