O insólito e a crença nos contos “O filho da Khedana” e “Morte inesperada”, de Aldino Muinga e Ungulani ba ka Khosa (Conclusão)

Lonicêncio Pio Paulino Fernandes da Silva*
3. O insólito e a crença em “O Filho da Khedana” e “Morte Inesperada”
De forma a dar seguimento à nossa análise, que pretende evidenciar a existência do insólito e da crença, trazendo o texto “O Filho da Khedana”, começaremos por dizer que a questão do insólito e da crença é representada por várias acções protagonizadas pelas personagens.Nos moldes “contextualizantes”, o texto apresenta-nos o enredo que se sucedeu no povoado de Magunge, onde temos uma mulher que primeiro, nos é apresentada como sendo casada, mãe de duas filhas e trabalhadora.Ademais, no seio da povoação, essa não conquistará a simpatia de muitos, isto por conta do seu modo de ser arrogante e intriguista, essa ideia nos é transmitida pela seguinte passagem: “…a Khedana era uma mulher trabalhadora (…) não gozava de grandes simpatias na comunidade. (…), uma mistura de arrogância, de mal-dizer e de coscuvilhice, valeu-lhe muitos amargos na boca (…)sobre a origem e a veracidade de certos pronunciamentos difamatórios, que teriam sido inventados e propalados por ela”. (MUIANGA, 2011, p. 23)
Sendo assim, a personagem é apresentada como fonte de discórdias e fomentadora dos rumores que causara enumeras discussões. Como antes nos referimos, Khedana e o seu marido, só tinham filhas, com isso sente-se a necessidade de existir um homem na sua prole, “Sentia-se que na família havia a ansiedade, muito mais marcada da parte do esposo, em ter um varão. Não se conformava só em ter raparigas na prole” (MUIANGA, 2011, p.23). O nascimento desse menino que iria ter como nome, o do seu avo paterno, criara uma expectativa maior no seio da família.
Tratando-se de uma comunidade marcada por valores tradicionais, Khedana fez-se acompanhada pela sogra aos serviços de maternidade. O nascimento do menino é registado “As dores de parto anunciaram a eminência do mesmo. À volta dela uma parteira de ar maçado recita um já desbotado discurso de encorajamento…kukumusha!…puxa!…Até que, finalmente, Khedana alivia das amarras do ventre a quarta criança da sua prole” (MUIANGA, 2011, p. 24). Deste modo, o insólito como algo surpreende, e que não foi previamente calculado nos é apresentado com o nascimento de um bebe sem sexo, esta ideia é transmitida pela passagem “Dois vagidos cortaram o are tinham timbres diferentes. A princípio ela pensou que fossem gémeos. (…) o que a parteira lhe depôs ao colo era umsó recém-nascido. Instintivamente, desviou os olhos para o lugar dos órgãos genitais “De que sexo é esta criança, afinal?”, gaguejou para a parteira. Esta emudecera.” (MUIANGA, 2011, p. 24); por outro lado, a questão do insólito vem reforçada pela passagem “O bebe da Khedana tinha dois rostos: um voltado para frente e outro para trás.”/ “Em ambos os rostos transparecem sentimentos dissemelhantes, contraditórios, porque olham para lados opostos: um sorri, outro é sisudo. Um antagoniza o outro: se o primeiro manifesta tristeza, o segundo é risonho.”(MUIANGA, 2011, p. 24).
De forma a explicar o porque donascimento de um filho sem sexo e com dois rostos controversos, os residentes da região acreditam que tenha sido um castigo destinado a Khedana pelo seu mau carácter perante os outros, uma vez que era uma mulher fomentadora de intrigas na povoação. Mediante isso, o insólito nesse texto nos é apresentado com o nascimento de um bebe com dois rostos controversos e sem sexo, em função disso surge a crença de que o nascimento de um bebe com essas características tenha sido um castigo destinado a Khedana, pois, essa apresentava-se simpática para ocultar a sua faceta de falsa e mentirosa, nesse sentido a crença surge como algo ligado ao comportamento humano, na medida em que visa identificar uma forma humana de habitar e interpretar o mundo, neste caso busca-se uma explicação sobre o nascimento do filho da Khedana, de modo a acomodar e tranquilizar o Homem na sua vivência.Fixando o nosso olhar noconto “Morte Inesperada”, deparamo-nos com uma situação semelhante à do texto “O filho da Khedana”, na medida em que, nos dois,na diegese é projectada a questão da dimensão espiritual. Com efeito, temos nesse texto personagens e situações que nos remetem a existência de insólito e crença.
Nesse texto nos é trazida a peripécia da morte, deste modo, o texto inicia-se fazendo alusão ao episódio da velha que perdeu o seu marido “A bala furou o casaco entre o bolso inferior direito e as casas dos botões, penetrou no ventre, rasgou as vísceras e saiu do corpo, incrustando-se na árvore em que se encostara, ao cair da tarde (…). A mulher, ao aproximar-se, com os cabelos louros revoltos e o rosto marejado de lágrimas, teve que suster o passo, pois os olhos esbugalhados e vermelhos do marido obrigaram-na a tal”. (KHOSSA, 2008, p. 64)
Ademais, como o título do texto nos remete a uma interpretação, vinculada a ideia do insólito, notamos que a morte desse homemretrata de um modo abrangente a dimensão do insólito, isso, quando atentamos ao momento em que o homem estando no leito de morte, dirige-se a velha da seguinte maneira “ – Fixa o que te digo, mulher: no dia em que ousares receber um homem por entre as tuas coxas, estrangular-te-ei com a mesma ferocidade com que dilacero uma barata. Tu és minha e serás minha para além da morte”. (KHOSSA, 2008, p. 64)
Assim sendo, o insólito nessa perspectiva é definido como algo surpreende, que ocorre longe doprévio ou premeditado.As palavras proferidas pelo velho no leito da morte constituem algo não costumeiro, isto é, o não-habitual que neste caso é marcado pelo estranho, quando reparamos parao sentido dessa acção. Transparece-nos uma duvida do seu sentido pois não assenta numa explicação de base “lógica”. Sendo a morte algo da dimensão supra humana, a velha com a intensão de apagar a imagem do marido que a perseguia em noites de insónia, oferece as roupas ao guarda do prédio, “…o velho casaco, oferecido por uma velha anelante em apagar a imagem do marido que ainda a perseguia em noites de insónias, ameaçando-a de morte com a mesma gravidade com que proferira a sentença macabra, à beira da morte (…) ”; “O guarda recebeu o casaco e remendou-o, à noite, no cubículo que lhe estava reservado, apagando por todo sempre o mau presságio (…) ”.(KHOSSA, 2008, p. 63 – 64). Desta forma, essas passagens nos remetem a existência da crença como o estado psicológico de um indivíduo, onde a velha acredita que o marido a visitava nas noites, com isso de modo a mudar essa situação, recorre àpráticasque visão fornecerinterpretação sobre o que está acontecer, além de a acomodar e tranquilizarna sua vivência.
Essas questões de insólito e crença que pretendemos evidenciar nesse texto, são mais evidentes quando tomamos a personagem Simbine como exemplo. Tendo em conta a passagem, “Terás uma morte maldita, filho, disse-lhe, anos depois, o filho já adolescente, quando este recusava ir à escola (…) afirmara que os pretos viveram séculos sem o quinino e o livro (…). (KHOSSA, 2008, p. 66 – 67). Por outro lado temos a passagem “…uma mulher de tanto gritar passara a uivar como os cães que pela noite adentro vãolançando maus presságios nas casas trancadas”. Essas passagens nos remetem a ideia do insólito quando tomamos esse conceito na perspectiva de nos trazer factos ou realidade que não seguem o costume ou o habitual, a primeira passagem traz o insólito em forma de algo estranho e na segunda passagem em forma de estranho e sobrenatural.Como antes nos referimos, o texto traz a questão da morte, centrando-se na personagem Simbine, podemos encontrar elementos que sustentem o que temos defendido nesse artigo.“ – O que é que se passa? – perguntou o guarda/ – um homem morreu no prédio (…)/ – o elevador de cara entalou-o (…)”, deste modo, é registado o momento em que se comunica ao guarda sobre a ocorrência e longe de pensar que fosse o seu filho, a senhora subia as escadas, sem no entanto se preocupar com o andar sinistrado; “Muito longe de pensar que o elevador não vinha por ter entalado o pescoço do filho, a velha começou a subir as escadas, ciciando impropérios à terra e aos homens que criaram máquinas malvadas e caprichosas”. (KHOSSA, 2008, p. 65)
Vista em duas perspectivas, a morte de Simbine remete-nos a ideia de estar assente em duas vertentes, a primeira leva-nos a feitiçaria como uma prática, deste modo, levanta-se a questão de se ter casado com três mulheres, “E quanto ao Simbine não restava dúvidas que era feitiço. Os tempos de hoje não se prestam para viver com três mulheres” (KHOSSA, 2008, p. 70).
A segunda explica-se tendo em conta ao mau presságio proferido pela mãe, “Terás uma morte maldita, filho, disse-lhe, anos depois, o filho já adolescente, quando esteve recusava ir à escola” (KHOSSA, 2008, p. 66).
Constatamos assim, que os dois textos apresentam uma dimensão espiritual, na medida em que, os eventos que descrevemos como insólitos movem toda a narrativa, em busca de uma explicação, deste modo surge a crença como forma de acomodar e tranquilizar as personagens perante esses eventos. Sendo assim, os dois textos assemelham-se ao nível do conteúdo, onde ambas narrativas trazem consigo questões ligadas a dimensão espiritual e a superstição, como sendo uma crença ou conjunto de crenças consideradas “estranhas” a fé religiosa e contrarias a razão, sem no entanto apresentar um fundamento positivo conhecido, mas suficientemente forte para determinar a conduta de um meio. No que tange as diferenças, percebemos que a nível do conteúdo temos o seguinte: enquanto o texto “Morte Inesperada” apresenta o insólito ligado a ocorrência de mortes, no texto “O filho da Khedana” esse é representado pelo nascimento, constituindo assim a principal diferença.
Podemos dizer que, a crença sempre aparece como índice necessário à compreensão da presença do insólito nos dois contos, podendo-se estabelecer assim, o contacto entre esses dois textos. Pois, o Insólito presente nos contos é aceite prontamente, sem, contudo, deixar de ser questionado e percebido como tal.
4. Conclusão
O presente artigo tinha por objectivo descrever a importância do insólito e da crençanaLiteratura Moçambicana, onde numa perspectiva comparada propusemo-nos analisar os textos “O filho da Khedana” e “Morte Inesperada”, demonstrando como se manifesta o insólito e consequentemente a crença nas narrativas moçambicanas. Numa visão antropológica, o insólito e a crença representam a nossa identidade cultural, deste modo esses dois conceitos unidos, criam de certa forma estórias curiosíssimas que em alguns momentos, se associam ao “obscurantismo”.
O insólito e a crença são importantes na medida em que se manifestam como elementos que moldam a conduta social do homem, naquilo que se entende por vida humana. O insólito faz-se presente nos textos mediante a apresentação de eventos considerados estranhos, mágicos e sobrenaturais. Deste modo, o insólito é apresentado pelo nascimento de um bebe com dois rostos controversos e sem sexo. Ademais, a crença surge quando se acredita que o nascimento de um bebe com tais características, seja um castigo destinado a Khedana por se apresentar simpática para ocultar a sua faceta de falsa e mentirosa. Por outro lado, o insólito em “Morte Inesperada” manifesta-se quando se faz alusão às palavras proferidas pelo velho no leito da morte, por outro lado, temos a questão de uma mulher que de tanto gritar, passou a uivar feito cães e por fim, a morte de Simbine no elevador. Deste modo, podemos falar de crença quando se procura uma explicação da morte de Simbine e as aparições nocturnas do velho. Com isso, a morte de Simbine é explicada por duas perspectivas ligadas a superstição, a primeira remete-nos a feitiçaria, onde se levanta a questão de se ter casado com três mulheres; a segunda explica tendo em conta o mau presságio ditado pela mãe, quando ele era adolescente.
Sustentado pela ideia de que qualquer Texto, mantem uma relação de diálogo com os outros (embate de vozes), a nossa análise pretendeu concretizar as teorias de Bakthin avançadas por Florin e secundadas por Ferreira, em que ambos autores concordam que um texto é um produto de interacção social, portanto não pode ocorrer isoladamente, pois, foi produzido num constante diálogo com outros (textos). Deste modo, podemos afirmar que, a nível do insólito e da crença os textos “O filho da Khedana” e “Morte Inesperada”, dialogam na medida em queabordam aspectosda identidade cultural de Moçambique,na base de estóriascuriosíssimas.


*Estudante do4º ano, Licenciatura em Literatura Moçambicana, na Faculdade de Letras e Ciências Sociais, Departamento de Linguística e Literatura (Universidade Eduardo Mondlane).E-mail: [email protected]
Referências Bibliográficas
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