O insólito e a crença nos contos “O filho da Khedana” e “Morte inesperada”, de Aldino Muinga e Ungulani ba ka Khosa (Parte I)

Lonicêncio Pio Paulino Fernandes da Silva*
1. Introdução
A dimensão espiritual do Homem, desde o seu surgimento, sempre esteve associada ao desejo de dominar o mundo para afugentar o medo e a insegurança ou, por outra, para criar uma base de explicação para o que ocorria fora do seu círculo de saber. Sendo assim, este artigo surge no contexto dos estudos da Literatura Comparada em Moçambique.

Entendido como visões “tradicionais” que explicam a ocorrência de fenómenos não assentes na Ciência, o insólito e a crença transportam uma simbologia, pois, primordialmente, tentam explicar a realidade de modo a acomodar e tranquilizar o homem na sua vivência, transmitindo, assim, possíveis conhecimentos que expliquem factos que a Ciência não havia explicado. Com isso, não se pode confundir com a verdade, uma vez que, esta exerce grande importância no entendimento das acções humanas (no concreto), na medida em que, pode ser demonstrada a sua veracidade, podendo assim não deixar dúvidas.

Tendo como base de análise textos pertencentes ao sistema literário moçambicano, apontamos como motivação para a concretização deste trabalho, por um lado, a necessidade de compreendermos os fenómenos “culturais” moçambicanos trazidos à Literatura. Por outro lado, o facto de estarmos perante textos que caracterizam as comunidades moçambicanas, sobretudo as comunidades tradicionais.

De um modo geral, a presente abordagem nos permitirá entender e captar a dimensão espiritual (insólito e crença) e perceber o que a condiciona, ou seja, o que está em torno dela, pois, “antropologicamente”, os dois textos exploram o “nosso mundo”, trazendo ao de cima as nossas crenças, preocupações e inquietações sociais, ligadas ao choque entre a Ciência e a Tradição. Deste modo, podemos extrair os seguintes objectivos: Descrever a importância social do insólito e da crença; Analisar a configuração e função do insólito e da crença nas narrativas moçambicanas.

2. Crença e Insólito
2.1 Crença
De modo a apresentar uma noção de crença que vá de acordo com a perspectiva de análise que pretendemos desenvolver, recorremos aos posicionamentos teóricos de diversos autores. Autores como William James e Charles Sanders Peirce, citados por Maria Rita Furtado , afirmam que a noção de crença surge intimamente ligada à noção de acção. Defendem, no geral, que se acredita que determinada proposição é verdadeira quando se age de acordo com ela. Assim sendo, a crença será uma espécie de norma que rege as acções e os hábitos de uma pessoa ou de um colectivo.

Segundo Peirce, em “The Fixation of Belief”, define-se a crença como um estado, isto é, como sendo um estado de calma, de “satisfação” e que determina acções. Por marcarem comportamentos diferentes, as crenças definem formas de vida diferentes, desempenham, portanto, um papel regulador da vida de cada pessoa.

No entanto, nem todas as crenças regulam ou definem um mesmo número de acções ou comportamentos, uma vez que as crenças regulam coisas diferentes; consequentemente, têm graus de relevância diferentes.

Por último, segundo o Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, crença refere-se ao estado psicológico em que um indivíduo detém uma proposição ou premissa considerada como a “verdade”, ou ainda, uma opinião ou convicção formada que se tem como certa. Essa definição, que toma a crença com um estado mental de um indivíduo em relação a uma ideia que pode ser verdadeira ou falsa, chama-nos atenção para o elemento subjectivo do conhecimento.

Deste modo, podemos constatar que ter crenças é uma condição necessária ao comportamento humano, na medida em que, visa identificar uma forma humana de habitar e interpretar o “mundo”.De facto, a crença molda a conduta social em conformidade com uma proposição que se tem como verdadeira ou falsa. É nesta perspectiva teórica de interpretar e explicar o mundo, de modo a acomodar e tranquilizar o Homem na sua vivência, transmitindo possíveis conhecimentos que explicam factos que a ciência não havia explicado, que desenvolveremos a análise.

2.2 Insólito
Discutir o insólito, é discutir o homem em seu horizonte histórico, cultural e social, pois a percepção deste conceito passa necessariamente pela localização econtextualização cultural.

Segundo Garcia (2007), citado por Costa (2009, p.9), “algo é insólito quando nos surpreende e não foi previamente calculado”. Assim, pode ser entendido como algo não costumeiro, isto é, o não-habitual em detrimento do habitual, que pode ser visto como algo previamente delimitado e formatado.

Nas narrativas, o insólito marca-se pela presença de eventos próximos do estranho, do mágico, do maravilhoso e do sobrenatural, onde, anível de sentido, esses eventosremetem-nos a uma explicação de base não “lógica”. Desta forma, tomaremos o conceito de insólito como o surgimento de uma realidade oposta à habitual.

2.3 Dialogismo
Segundo Florin (2006, p. 18), “Dialogismo é o que Mikhail Bakhtin define como o processo de interacção entre textos que ocorre na polifonia, tanto na escrita como na leitura, o texto não é visto isoladamente, mas sim correlacionado com outros discursos similares”. Portanto, o dialogismo pensado por Bakhtin tem como objecto o estudo de enunciados, centrando-se nas relações de sentido que podem estabelecer entre si, ou seja, entre dois ou mais enunciados. No caso específico do presente artigo, os enunciados são constituídos pelos textos “O Filho da Khedana” e “Morte Inesperada”. Onde o primeiro texto pertencente a obra Mitos (histórias de espiritualidadede Aldino Muianga, publicada em 2011, esta obra é vista como um retrato da dimensão espiritual do mito e da crença nas comunidades moçambicanas marcadas ainda por valores tradicionais e não só. E o segundo texto pertence a obra Orgia dos Loucos deUngulani Ba Ka Khossa, obra publicada inicialmente em 1990, nos apresenta contos intimamente ligados à tradição oral. Assim, procuraremos as relações de sentido que se estabelecem entre os dois enunciados que constituem o nosso corpus.

De acordo com Ferreira (2012, p. 6), Bakthin contribuiu para a ampliação acerca do campo de pesquisa da linguagem quando se preocupou com o exame da natureza da enunciação verbal. Para ele, “além da matéria linguística exposta nos diferentes enunciados devem ser analisados os elementos contextuais da produção verbal”. Tomando assim, o texto como um elemento de transmissão de conteúdos – matéria linguística e como um produto de interacção social.
Nesse caso, o dialogismo é o “lugar-comum”em que os textos encontram espaço de interagir, daí, pode-se se falar da existência de um processo dialógico e não monológico.


*Estudante do4º ano, Licenciatura em Literatura Moçambicana, na Faculdade de Letras e Ciências Sociais, Departamento de Linguística e Literatura (Universidade Eduardo Mondlane).E-mail: [email protected]
Referências Bibliográficas
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Centro de História da Cultura/História das Ideias (org.), (1999), “Piedade Popular: Sociabilidades, Representações, Espiritualidades”. (Actas do Colóquio Internacional, 20-23 de Novembro de 1998), Lisboa, Terra mar/Centro de História e Cultura-História das Ideias da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
GARCÍA, F. “O ‘insólito’ na narrativa ficcional: a questão e os conceitos na teoria dos géneros literários”.in: A banalização do insólito: questões de género literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.
LAGES, Mário, «Práticas mágicas, aproximações à dimensão simbólica»,inReligiosidade Popular e Educação na Fé. Lisboa: Secretariado-Geral do Episcopado, 1987; pp. 89-115.
KHOSA, Ungulani Ba Ka. “Morte Inesperada”,in:Orgia dos Loucos. Maputo: Alcance Editores, 2008, pp. 63-71
FERNANDES, António José, Métodos e Regras de Elaboração de Trabalhos Académicos e Científicos. Porto Editora, 2ª Edição, 1995
PESSANHA, F S. “O insólito na dimensão do poético: o movimento de um questionar”.in: GARCÍA, F (org.). Narrativas do insólito: passagens e paragens. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2008. pp. 32-48. Disponível em www.dialogarts.ierj.br/avulsos/insolito/narrativas doinsolito.pdf
SHERMER, Michael, Cérebro & crença. São Paulo: JSN Editora [tradução Eliana Rocha]; 2012
Walter, E. M. A dimensão do fenómeno superstição em contos de Ungulani Ba Ka Khosa e Mia Couto. Maputo: Dissertação apresentada em cumprimento parcial dos requisitos exigidos para obtenção do grau de licenciatura em Linguística da Universidade Eduardo Mondlane, 2002
CARVALHAL, Tânia Franco, Literatura comparada, São Paulo: Ática, 4. Edição, 2006

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