ARREMESSOS, uma colecção composta por três livros, de três géneros literários e da autoria de três autores, serão conhecidos na sessão pública a decorrer na próxima quinta, 31 de Agosto de 2023, às 17h30, no Business Lounge By Nedbank, em Maputo. Os livros: câncer (poesia), de David Bene; como sombras e cavalos a levitar (romance), de Mélio Tinga; e o alguidar que chora ou a história as pedras que falam (teatro), de Venâncio Calisto são as propostas desta colecção.
Neste contexto fazemos a pré-publicação de exertos da peça do livro do Como sombras e cavalos a levitar de Mélio Tinga. Boa leitura:
LEITURA 2 (P.133)
Quinto.
Eu amei Esmeralda. E o relógio sobreviveu. Eu amei Esmeralda, cicatriz no músculo cardíaco, amei-a com o desespero dos últimos dias de ânsia e penúria, amei-a como se amam as coisas tóxicas e precisas. Amei-a com as unhas levantadas, cravadas com aflição ao tronco, porque o enxame abre a cratera lá em baixo. A boca húmida, os beijos em digressão – amei-a. A canção da solidão, de costas para o mar. Afastar as coisas tristes do meu corpo – amei-a. Agulhas tecidas pela saudade, as tardes silenciosas na casa, o rádio a tocar roque, jazz, rumba, marrabenta – amei-a. O cheiro das suas axilas, o suave cheiro e os pêlos negros enrolados em argolas difíceis, também a púbis levantada para frente a imitar um objecto heólico que avança na direcção dos olhos. A voz, uma inquilina que melifica o destino que nos é amargo, o gemido a levantar com a violência do catavento, a afastar o ciúme das aves, a expulsar os cães rafeiros que só mijam em torneiras simultâneas pelas paredes da casa – eu amei Esmeralda. A puta que fodeu com o padre Manuel na igreja, cabeça para baixo a arranjar o vestido vermelho-carmim e logo a seguir fugiu assustada, e, movida por coisas que nunca entendi, surgiu na minha porta para lamber-me o corpo e espalhar a sua saliva virosa pelas minhas partes íntimas – amei-a. Não quero socorro por estas semanas em que, quis o destino, o meu coração borbulhava incansável e desejava morrer – se isso significasse ficar em respiração assistida com a minha boca aberta entre as suas pernas cálidas, com o vestido no punho da mão. Eu amei Esmeralda, a puta. O que farão os deuses no seu Olimpo?
Sexto.
«Porquê tanto condenas o padre?»
«É um falso»
«Porque fodeu comigo?»
«Porque enganou-me»
«Enganou-te?»
«A mim e a todos.»
«Os padres também fodem!»
«A nova deusa…»
«Ele ajuda as pessoas, mas isso não o faz deixar de ser homem.»
«Devias ter vergonha.»
«Porquê devia ter vergonha?»
«Qualquer mulher teria»
«Esse é o vosso problema.»
«Nosso?»
«Sim, vosso!»
«Nós quem?»
«Vocês. Os falsos moralistas.»
«Não, eu não…»
«Não parece.»
«Estou chocado, só isso!»
«Ele paga-me.»
«Ele é um padre.»
«E daí?»
«Daí que ele não faz o que prega todos os dias na merda do altar!»
«Nunca o fui ouvir, não sei o que ele prega.»
«Pelos vistos só te vais confessar.»
«Estás a surtar ou o quê?»
Em tom baixo e envergonhado:
«Sinto coisas estranhas por ti…»
«Tu me amas!», ela, com firmeza.
«O padre também.»
«Não sei.»
«Precisas saber o que queres.»
«É meu trabalho, não tenho de escolher nada, entendes?»
«Mas dizes ser diferente comigo.»
«Sou apenas uma puta para ele.»
«Para mim?»
«Eu desejo-te com verdade, homem!»
«Não acredito.»
«Já me despi, o que mais queres que eu faça?»
«Não sei, não sei…»
«Não tenhas medo, diga-me…»
«Não sei. É verdade que não sei.»
«Amas-me…»
«Sinto coisas.»
«Sentes?
«Quando me sento, quando toco a flauta, quando estás comigo…»
«Que coisas?»
«Pássaros!»
«Tens jeito para poeta.»
«Sinto baratas no estômago»
«Eu te trago pássaros e baratas?»
«Acho que é amor.»
«O amor é ave?»
«Tem sempre asas.»
«Porquê não me beija…»
«Está prestes a chover.»
«Me beija.»
«Vai chover esta noite.»
«Todos os dias há chuva.»
«Ouves os pingos?» «Só me beija»