É a notícia da semana, ameaça ser o acontecimento do semestre, alguns fatalistas têm fé que seja o acontecimento do ano. Ele cuspiu e foi processado, tirou a saliva da boca e inspirou manifestações, pedidos de desculpas e campanhas de marketing.
Ao longo da semana tirei notas, pensei muito neste texto, mas hoje estou a escrever no joelho, sem inspiração, coloquei três colheres de café, uma de leite e açúcar, estou a tomar, mas não consigo descrever com detalhes o que aconteceu de forma breve. Vou colocar as anotações do meu bloco, para pormenorizar o que aconteceu:
ANOTAÇÃO 1. A QUEIXA
Ele entrou na esquadra às 15 horas, algemado. Sentou para dar o depoimento, mas quem falou foi a personagem da acusação.
“Ele desacatou-me. Cuspiu olhando para os meus olhos azuis. Levantou os ombros, todo estiloso, estufou o peito, olhou para a saliva que jogou no chão, comparou o que cuspiu com a minha pessoa, depois esmagou”, disse o senhor de idade.
O agente anotava indignado e apoiava as falas do acusador. “Mas que ousadia, quem ele pensa que é?”.
E foi isso, o homenzinho cuspiu e ficou 48 horas nas celas, no terceiro dia, conforme as escrituras da acusação, foi levado aos calabouços da cadeia de máxima segurança, para não ter a petulância de voltar a arremessar a sua saliva sem medir as consequências. No processo, a sua boca foi descrita como uma arma de alto calibre e a sua saliva foi categorizada como munição letal, por isso não foi autorizado a abrir a boca.
ANOTAÇÃO 2. INOCENTADO
Na segunda semana de reclusão, sem se ter muita explicação, o acusado foi libertado. Não pagou caução, apenas foi libertado como um cão vadio paranoico, que tenta ganhar o pedigree que só poderia adquirir na próxima vida.
Na terceira semana ele cuspiu pela última vez, foi enterrado e os familiares reclamam por justiça. O caso chegou aos jornais. E a sociedade estava indignada, foi preso um inocente. Mas o que ele fez? Cuspiu. E depois?
ANOTAÇÃO 3. TEORIA DE CONSPIRAÇÃO
Os familiares pedem autópsia, não acreditam que a morte seja natural. E as marchas que são promovidas pelas Organizações da Sociedade Civil patrocinam a motivação dos familiares, que querem que o corpo seja tirado da terra em que o finado jogou a saliva.
“Ele cuspiu para um poderoso. Eles ainda controlam o Sistema. Não podemos aceitar que a segregação prevaleça. Temos o direito de cuspir, onde bem entendermos, é um direito que está plasmado na nossa Constituição”.
ANOTAÇÃO 4. #INSPIRAÇÃO
Virilizou e em todas as publicações nas redes sociais terminam com #deixem-noscuspir. Encontrei este poema escrito por um jovem entusiasta…
CUSPIR NA CARA DA INJUSTIÇA
Tire a saliva,
cuspa as palavras
que a escravidão negou-te
o direito de tirar
Cuspa as algemas,
deixa a saliva da opressão
ser devorada pelo chão,
a terra que conservou
o cadáver de King,
Malcon, Mandela.
Deixa o líquido fermentar
na boca e arremesse contra eles
Grita a liberdade que Noémia poetizou,
berra a revolução dos afro-americanos
Deixa a raiva ser
o negro petroleio
que patrocina a nossa combustão,
contra a opressão.
Anotação 5. O mercado precisa desta saliva
Antes de terminar a crónica, vi camisetas a 2 mil meticais com a marca “Cuspir é Bom”. Entrei no facebook e encontrei textos sobre o cuspe, que é o tema das prosas de todos os intelectuais de plantão. Pausei e percebi que o texto está longo e ainda tenho uma anotação por partilhar.
Anotação 6. A biologia
Escutei num dos debates, um filósofo dizia que a ciência sempre procurou sempre estudar o outro.
“Muitos tratados científicos categorizam-nos. Seres racionais lutaram para provar que a nossa racionalidade é atrasada. E está aí: ele cuspiu, um acto racional e foi preso. Se não forem esterilizadas estas mentes enferrujadas, continuaremos a ser encarcerados como subhumanos”.
Enquanto proferia as palavras, o jornalista recebeu uma indicação, entrava em directo um colega, que respondia da fachada da medicina legal.
“O relatório da autópsia prova que o homem teve uma morte natural, causada por pneumonia por aspiração, ou seja, aspirou saliva para os pulmões, o que criou uma infecção e subsequente óbito. A autópsia precisa que Homem sofria de sialorréia, o acto de cuspir era a manifestação da uma condição médica em si. Em resumo, ele tem produção excessiva de saliva, bem acima do normal, que é de cerca de 500 ml a 2 litros por dia”, disse, para depois se despedir.
Anotação 7. Tudo passa
Enquanto anexava a crónica, vi nas redes sociais, que existe um novo assunto: um empregado mordeu o cão do patrão. Não mordeu num local qualquer, mordeu onde não devia morder. Foi preso, não tem dinheiro para pagar caução, vai para a cadeia de máxima segurança, a sua boca é letal, tem raiva e deve estar isolado da sociedade, para evitar males maiores. Será menos um cão sem pedigree nas ruas. Ainda vai dar barulho isso.