As Lesões

Por Harani-MAHALAMBE

É um equívoco pensar-se que entre o Crítico e o Autor haja um abismo alicerçado pela Obra de arte; ou que a sua relação seja semelhante a dos protagonistas prosaicos de um romance policial (o Criminoso e o Detetive) – estes que por sua natureza instintiva a sua relação é de crime e fuga, e busca e captura, como as instintivas e milenares tramoias de gato e rato. Tão pouco a isso se aproxima. De facto, paradoxalmente, a relação entre o Autor e o Crítico é de criação, onde, para o primeiro, em que pode ser compreendido em duas facetas: Autor vulgar, basta-lhe a comunicação artística e o Autor génio, o esmero, o sublime, o «engenho», à semelhança do segundo (Crítico) – sem com isso ferir os excessos advindos da forma e do conteúdo, traindo, por assim dizer a Obra de Arte.

O Critico é um artista. Basta entender isto: para intervir nos segredos mais íntimos da arte é preciso que o sujeito tenha uma sensibilidade artística acima do criador e da própria obra de arte. Posto que o Autor é um ente nobre, puro e virgem, depositário de todas as experiências vividas ou lidas, e neste exercício tais sensações e/ou emoções  o traem expondo o seu produto a uma brutalidade ou a um refinamento exagerado e, não poucas vezes, à trivialidade e a uma falta de originalidade – ah! Eis uma das tarefas do crítico, a de despertar tais vícios, sem condescendência posto que, ele, parte do princípio irrefutável de que – como Sócrates concluiu e eu o parafraseio – o artista desconhece a recôndita técnica do seu ofício e da anatomia do seu produto de arte. E nesta relação entre o Autor e o Crítico é preciso um zelo abnegado e imparcial de maneira que as malhas das relações sociais entre os dois não interfiram no julgamento da Obra de arte: eis que lhe garanto que as minhas análises, articuladas por boa vontade da minha ignorância e destituídas de requintes e afeamentos ou maldizeres, não deixam de expor aquilo que a perceção me oferendou na longa madrugada da minha inteligência, sem pretextos de amizades coloridas ou negras, inveja ou adulações incautas e desmedidas, ainda que o saiba pior que todos traçar tal crítica.

Esgueiro-me, agora, às obras literárias que constituíram objetos de condecoração nos concursos literários nacionais no presente ano artístico e que, paradoxalmente, pelo dissabor do destino, seus autores não sendo naturais da metrópole – tal referência geográfica e importância administrativa que se confundem com a enganosa alcunha “metrópole das artes” – seus trabalhos não mereceram um olhar mais minucioso por parte da crítica nacional, por um lado movidos pelos motivos geográficos/ regionais e por outro pela aparente falta de seriedade dos críticos das artes no que diz respeito a vigilância literária, talvez porque se hospedou territorialmente uma crítica por afinidade e uma crítica elitista e/ou capitalista (ambas com a mesma valência de nocividade), salvo algumas manchetes mal achadas e com linhas bem empobrecidas e que pouco ou nada dizem sobre tais obras em algumas revistas.

À semelhança da produção artística, a crítica não deve ser feita em obediência a um favor solicitado por um escritor, a afinidade, ao elitismo ou em obediência do roncar do estômago insaciável. Ela tem que ser encarada como uma prática, uma cultura ou como uma resposta a uma obra lançada ao mundo para o consumo dos leitores condicionados a compra, posto que, o leitor também merece um advogado que o defenda perante esta roubalheira clássica que se esconde por detrás dos trabalhos dos escritores e editores; estes que se dobram na esquina confortável do designativo “ativismo cultural” para tirar a última migalha dos leitores que, primados de incapacidade de selecionar livros que valham a pena ler, e assim fazerem o bom uso do seu tempo escasso, também não têm voz de gritar pela prolixidade literária e pelo direito de ler um livro que valha a pena a sua publicação – eis que o crítico assume aqui uma função de «guardião de arte».

Foi assim que, com uma crítica ferrenha dissolvida dos compadrios e companheirismos, a Europa, em particular Portugal e França, conseguiram manter a qualidade da sua produção literária desde então.

****

O escritor medíocre, aquele que se atira ao mundo das letras, movido pelas turbinas da vaidade monetária e pelas veleidades e privilégios de se ser escritor entre as massas, simplesmente para ocultar a sua mediocridade entre os leigos, convém que seja travado antes que o dano se eleve e envenene a uma civilização toda.

Depois de ter publicado As doze varas, um escritor cuja obra foi repreendida, interpelou-me com enlevo e disse-me: obrigado sr. Harani, graças a sua crítica o meu livro vendeu mais. Mas se a podridão atrai moscas é natural também que os livros maus tenham maior concorrência. É tão simples entender isso, como nos lembra A. Schopenhauer “às obras ruins, nunca se lerá pouco; quanto às boas, nunca elas serão lidas com frequência excessiva. […] em geral, diz ainda o autor, quem escreve para tolos encontra sempre um grande público […]”.

Tem que dobrar a pele ainda húmida: refiro-me a si que pensa e ainda continua a proliferar livros tísicos, estéreis de forma e de cérebro, posto que, a escrita não é um exercício de fome, entanto de sensibilidade; não é uma passarela de desfile nem uma caverna onde se escondam os covardes de espírito. Aquele que faz a arte pelo estômago está ao mesmo pé com aquele que a faz porque simplesmente quer se destacar entre os leigos e confundir os génios. É urgente que os críticos estejam atentos aos eventos literários, às novas publicações de livros e reedições dos mesmos para que de maneira tão pontual se escreva sobre tais livros. Denunciar os impostores é uma maneira de combater a prolixidade.

Há que também considerar que, os escritores medíocres são em compensação os mais espertos e sempre buscam uma maneira de sobressaírem e de ver os seus livros concorridos e vendidos, daí que os seus esforços consistem e esgotam-se em cunhar títulos polémicos e comerciais e de atraírem a simpatia dos intelectuais e académicos que têm maior audiência e credibilidade para prefaciar e apresentar os seus livros e calar de vez a sinceridade da sua voz, simplesmente porque estão cientes da mediocridade das suas produções. E os intelectuais, acinte ou impensadamente, caiem nas trapaças dos falsos escritores, talvez para lograr umas cervejas nas esquinas, ou mesmo por condescendência, prejudicando, consideravelmente, primeiro a opinião pública e por fim a sua reputação entre aqueles que os admiram. O intelectual ou académico renomado tem que saber antes que ao apresentar um livro está simultaneamente a gritar em viva voz que “este livro é recomendável, leiam-no” e aquele que o prefacia, adulando-o ou ficando neutro em relação aos indigestos nele jazentes,  está a evidenciar a sua fraudulenta intelectualidade. Ou seja, está a dizer: este livro é meu irmão, posto que sou também feito de uma mediocridade. É tão simples você entender a fórmula: se você permite que um medíocre lhe coloque numa situação de mediocridade, então você também é medíocre.

****

Falei da urgência e não deixarei de anotar em linhas breves a ignorância e o desleixo que se engendra na imprensa ligada às letras ou com a programação televisiva que à revelia dos homens das letras fisga um tempo para abordar assuntos inerentes à produção literária. Assisti, não raras as vezes, em rubricas televisivas, sessões em que os novos escritores, a convite ou em maior dos casos sob o pedido dos próprios escritores, participam em conversas sobre os seus próprios livros. É tudo uma questão de barrulho publicitário – tarefa reservada à editora. E quem barrulha nada produz. Por uma razão muito simples: o trabalho do escritor termina na escrivaninha, ou seja, o autor-criador morre com o último verso ou parágrafo da sua obra de arte. O escritor sério, aquele que não tem a sua obra de arte como um produto comercial, ou de barganha, – à semelhança do vinho cuja embriaguez é uma consequência, os honorários artísticos não são uma causa – aquele que cada minuto é precioso, que dedica cada segundo para pensar e criar, entenderá facilmente que o exercício da compreensão do seu produto artístico não advém e nem depende das conversas televisivas, dos círculos literários, cujo intento é de parafrasear ou recontar o próprio livro, e tampouco está refém de falar dos mecanismos de produção do mesmo como se de uma receita de cozinha se tratasse: então, por que escreveu se podia contar? Custa ficar calado e permitir que o seu trabalho fale por si? Falar sobre o seu próprio livro é de todos os efeitos uma forma de se prostituir e prostitui-se aquele que não produz, que não tem nada de valor. O exercício de compreensão e interpretação de uma obra literária está nas mãos do leitor; é o leitor, por conseguinte, que valora a obra de arte.

É necessário que também se entenda que os apresentadores das rubricas televisivas, aqueles que nos entretêm pelas manhãs mornas ou nas rubricas da Casa Cheia, em maior dos casos, são leigos em matéria da arte, da teoria literária, etc. Veja por exemplo, é um equivoco hediondo confundir um declamador de poesia com Poeta. E na pior das hipóteses, não lêm, consequentemente, não possuem capacidades de conduzir uma conversa digna para com um artista das letras, daí que os seus esforços esgotam-se em conduzir o escritor a um exercício que se esgotou na produção da obra, forçando-o a recontar o próprio livro e a declamar seus próprios poemas, tornando a conversa enfadonha e desinteressante; conduzem conversa com um escritor cuja obra não leram. Uma nota que merece a atenção: ser apresentador da televisão não implica que possa falar de tudo e menos nada. Convém que uma imprensa ligada às letras, encabeçada pelos homens das letras, aqueles que lêm e entendem o cenário do campo literário, conduzam as rubricas e semanários ligados às letras. Temos um dos grandes exemplos do programa Artes e Letras.

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top