A morte é um chamado

A história que lhes contarei aqui, provavelmente suscite dúvidas em relação à minha índole, desacreditar-me-ão, eu sei, porém é verídica.

Aquela popular e consoladora frase “Nada acontece por acaso”, não é um caso, é verídica.

Recordo da adulta temporada desta caminhada em que decidi namorar um fulano muitíssimo próximo a mim. É certo que me conhecia à ponta dos dedos, só não tinha os códigos para decifrar as verdadeiras entranhas do meu verdadeiro ser – a relação não avançou. Justifico – ninguém, em sã consciência, tolera tanta meninice.

No final, é possível afirmar que graças a ele eu cresci. Por isso é que, “Nada acontece por acaso.”

Recordo, com muito pesar, do dia em que a mãe da minha irmã faleceu. Foi o segundo domingo do mês de setembro de 2019. Naquele dia, o sol não deixou de raiar, as pessoas não deixaram de sorrir e fazer planos. Tudo estava a correr num curso normal.

A mãe da minha irmã estava internada numa das medicinas do Hospital Central de Maputo e os mais novos não podiam fazer visitas, diziam que era mesmo para evitar futuras e precoces melancolias.

A minha irmã foi visitar a mãe. Era sábado e o sol não raiou.

A mãe estava lá, deitada na cama medicinal, com a amnésia tomando a sua consciência. Levou alguns longos minutos para se lembrar da filha e só depois, talvez numa luz divina, ela perguntou:

“Não foste trabalhar por quê?” E a minha irmã disse que era feriado, que estava de folga. A conversa, então, decorreu timidamente, até que ela, novamente questionou “As tuas irmãs estão bem?” E por fim aconselhou: “Cuide bem delas e nunca deixe de trabalhar.”

A minha irmã emocionou-se, entendeu que a mãe recuperava a saúde e regressou felicíssima. 

Já no dia dia seguinte, no domingo, no dia do adeus, o pai da minha irmã saiu mais cedo e foi ao hospital para dar à esposa o mata-bicho. Contou ele que, a sua companheira de 26 anos estava radiante, que parecia pronta para voltar ao lar, como se estivesse à espera do marido. Ela ria de felicidade, como quem dissesse “Estou em paz”, e estava.

Eles conversaram sobre a vida e foi de um jeito nunca antes feito: perdoaram-se, choraram e selaram a nova fase com uma oração, como quem dissesse “Estou em paz”, mais uma vez.

Ela fez alguns pedidos bobos e sabia que não se concretizariam àquele instante, é como se ela tivesse querido tirá-lo de perto.

Quando o pai da minha irmã regressou à casa, estava sentido, abatido e transbordava medo em sua feição. Não tardou e ordenou que todos fôssemos fazer a visita das 16h e alegrámo-nos, afinal, há uma semana que aquela materna figura se havia ausentado de seu lar e rever o rosto seria uma prenda.

Preparamos uma tocoçada de peixe e xima para acompanhar.

Pintámo-nos, vestimos roupas alegres e percorremos a estrada circular rumo ao Hospital Central de Maputo, a casa das surpresas imprevisíveis. 

Lembrando que a mãe da minha irmã não queria que nenhuma das suas crianças a visse naquele estado e, talvez, Deus tenha compactuado com isto. As portas demoraram abrir, havia uma bicha enorme e nós ficamos para trás. Tentamos entrar, nada dava. Tentamos mais um vez, nada e de repente, uma pastora da igreja saiu (de onde ela entrou? Nunca se soube) e fez um sinal às enfermeiras e todas se agitaram.

Continuei posicionada, com o plástico que cheirava a peixe e farinha de milho, pronta para entrar, mas deram sinal negativo e deveríamos voltar.

O corpo já estava vazio, a alma havia partido para o além e, três dias depois, vi-a pela última vez deitada e de olhos fechados. Ela sabia, sempre soube que seria aquele dia e devia correr como bem-quis – sem plateia e, principalmente, sem as suas crianças.

Conto, ela perdoou a pessoa que mais a machucou, escolheu onde queria descansar e ainda disse à filha para que cuidasse das suas crias. Um anjinho segredou-lhe e ela foi forte, não chorou, só orou, fechou ou olhos e foi atender o chamado.

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