Não é este o meu personagem

O meu personagem quer vinho e isso me indigna. Não que devesse pedir uma 2M para ter a minha atenção. Nem boinas vermelhas. Mas vinho não é cena do Zé povinho.

Sim, o gajo quer estar sentado a ouvir uma Billy Holiday, Gregory Porter e tal. Quando podia ser um Tabasily, Mr. Bow e tal. Ou mesmo malta Ghorwane, Grupo RM, Gémeos Parruque. 

Persigo o gajo, a tentar moldá-lo à nossa maneira. Mas o personagem não está busy, tem outros planos. Durante muito tempo, em várias circunstâncias distintas, Mia Couto e outros escritores disserem que o/a personagem a dado momento ganha vida própria. Epah, sempre achei isso conversa para animar aos saraus.

Entretanto, querendo escrever sobre um gajo que cresceu no Hulene e ascendeu, a ponto de estar a viver folgadamente no centro da cidade e tal. E nisso, ao voltar para hood, reencontra a menina que o fazia vibrar na adolescência. A precariedade do bairro, as suas gentes, viriam nas descrições. 

Porém o que me surge, parece crescido na town com vista para o mar, da varanda. O pai, desde a independência que é director nacional de sei lá o quê. Ainda puto, estamos a falar dos anos 80 e 90, as férias já eram em São Petersburgo, Londres, New Orleans e tal. Calçou tiganas, trouxe CD ‘s para o pai, quando ele não fosse na viagem, que era devoto de Joe Louis, Charlie Parker, Louis Armstrong e achava Frank Sinatra muito light.

O meu personagem se lembra de ver, para ele, o tio Ricardo a derrotar o pai numa partida de xadrez. Para o que eu queria escrever é Ricardo Rangel, essas de tio Ricardo é luxo.

Este personagem que me persegue, fez a licenciatura em Lisboa, o mestrado em Barcelona e para o mês doutora-se em Frankfurt. Não descarta a hipótese do casamento ser em Dubai, a casa que herdou do pai continua lá, sem ninguém a morar. E está a concorrer para uma vaga em Istambul. 

O personagem que me persegue voltará ao país se quiser ou se não der certo lá. Hoje os amigos do pai, já falecido, são PCA’s das estatais, ministros, empresários, deputados, altos funcionários de grandes ONG’s e tal. Então, job não seria problema.

Mas o personagem sobre o qual eu queria escrever, esse, só no suor mesmo é que vai conseguindo a sua ascensão. Vendeu jornal para ir a faculdade, fez boladas, deu explicação, fez trabalhos e testes dos colegas em troca de uns trocados e até, no período do rastanço, fez monografias várias nas ciências sociais. Seu número de telefone está gravado Maza em muitas listas de contacto da town.

Só há pouco, já a trabalhar, é que foi a Mpumalanga. Escuta rap, maningue rap que nos finais dos anos 90 penetrou nas periferias de Maputo e nunca mais saiu de lá. Tendo moldado o imaginário de maningue gajos. E ntsem!

Epah, eu vou aguardar a inspiração para escrever sobre o personagem que eu quero, não esse que me persegue.

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