O ALGUIDAR QUE CHORA OU A HISTÓRIA DAS PEDRAS QUE FALAM, VENÂNCIO CALISTO

ARREMESSOS, uma colecção composta por três livros, de três géneros literários e da autoria de três autores, serão conhecidos na sessão pública a decorrer na próxima quinta, 31 de Agosto de 2023, às 17h30, no Business Lounge By Nedbank, em Maputo. Os livros: câncer (poesia), de David Bene; como sombras e cavalos a levitar (romance), de Mélio Tinga; e o alguidar que chora ou a história as pedras que falam (teatro), de Venâncio Calisto são as propostas desta colecção.

Neste contexto fazemos a pré-publicação de exertos da peça do livro do Venâncio Calisto. Boa leitura:

LEITURA 1 (P.15)

Karingana wa Karingana

Há muito

muito, muito tempo,

as pedras não falavam.

Passou tanto tempo

e as pedras ainda não falam.

E a história acaba aqui. 

— Por que é que a história acaba aqui?

Tu tens tanta fome.

Ouve, esta é a história que a avó da minha avó contou à minha avó, e a minha avó contou à minha mãe e a minha mãe contou-me a mim e agora estou eu a contar-te a ti. Mas tu tens tanta fome. Neste mundo ter fome é um sacrilégio. Tu és um sacrilégio.

A fome que incha o teu ventre é a coragem que nos faltou para contar outras histórias. Histórias em que as pedras finalmente falam. Vai, e conta a história das pedras que falam.

***

Karingana wa karingana

Há muito,

muito…

pouco tempo,

mais ou menos há um minuto atrás, incinerei com as minhas próprias mãos um cadáver. O cadáver daquele que contou à avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da avó da minha avó que as pedras não falam.

Incinerei-o aqui, nesta sala. Já agora, perdoem-me este cheiro a queimado que deve ser desagradável e desconcertante para alguns. Mas o cheiro da mentira é assim. Para alguns asfixia e para outros tantos é como respirar.

***

E diz o Karingana:

A pedra só é útil se estiver em silêncio.

A harmonia da humanidade depende do silêncio.

Das pedras.

Com o silêncio das pedras construiu-se o grande império do mundo: as cidades, os castelos, as calçadas, os tronos… com o silêncio das pedras ergueram-se templos.

E com o veneno das suas palavras fez-se doutrina. A inscrição da única verdade possível no corpo da humanidade. A negação da existência das outras verdades, a castração da liberdade do ser, de se ser verdades múltiplas. 

***

Hoje, uma pedra, esta que se apresenta agora diante de vós, teve de estrangular com as próprias mãos o lugar no qual gerações inteiras foram obrigadas a calar. A calar a história das pedras que falam, a calar a sua própria existência. Repito, tive de estrangular, destruir, incinerar o lugar da subalternidade. A esteira de palha em que a minha mãe ouviu da sua mãe a mais antiga mentira da humanidade. O milenar silenciamento da história das pedras que falam.

LEITURA 2 (P.27)

Preciso de voltar atrás. Regressar à aldeia da minha infância. À noite carregada de assombro. Ao princípio de tudo.

— Mamã, sinto falta da avó.

— Os mortos nunca fazem falta. A morte é a presença mais absoluta. A tua avó está aqui, neste momento, sentada connosco nesta esteira de palha, a beber da quentura desta fogueira que nos aquece os ossos. Os mortos não morrem, vivem doutra maneira.

— Mas eu sinto falta da sua voz, de ouvi-la a falar.

— Quem sabe um dia ela não te venha visitar?

— Não quero ouvi-la dentro do corpo doutra pessoa. Quero ouvir a voz dela dentro de si mesma.

— Quem é que te anda a encher a cabeça com essas minhocas fantasiosas?

— Não são fantasias, mamã.

— Hummm…

— Acho que estou triste.

— A tristeza é a nossa sina, minha filha.

— Sina?

— Sim, o nosso destino. O destino de todas as mulheres.

— Porquê? Por que é o destino das mulheres a tristeza?

— Há coisas que não se devem perguntar. Aprenda isso enquanto é cedo.

— Que coisas são essas? E por que é que não se devem perguntar?

— Não se devem perguntar e pronto.

— Se a avó estivesse aqui, ela deixava-me perguntar.

— Já disse que a tua avó está aqui.

— Então porque é que ela não diz nada?

— Os mortos não falam em vão. Só intervêm quando é mesmo necessário. Vai chover em breve…

— Nunca vi o céu tão zangado.

— Deve ser a tua avó chateada com as tuas perguntas.

— Mamã!

— Estava a brincar, filha. O céu está assim porque os nossos antepassados estão zangados, por causa desta seca prolongada. Devem estar lá a resolver os assuntos da chuva… A tua avó uma vez contou-me que a chuva era na verdade o suor dos nossos defuntos, a prova do quanto eles lutam por nós.

— Conta mais, mamã.

— Não tenho mais nada para contar.

— A avó tinha sempre uma história para me contar.

— Está bem, karingana wa karingana… no princípio era a fome… a que tu carregas.

***

VENÂNCIO CALISTO nasceu em Maputo em 1993. É dramaturgo, actor e encenador. Colabora atualmente com o Teatro Nacional Dona Maria II, onde participa da Odisseia Nacional com a criação da peça Viagem Por Mim Terra. Para além de Moçambique e Portugal, o seu percurso teatral passa por França, Itália e Brasil. Publicou os livros de teatro O alguidar que chora ou a história das pedras que falam (Edição de autor, 2020 e Húmus, 2021); Dentro do Estômago do mundo | dentro do vazio para ser mais exato (Húmus, 2022). Tem quatro livros infantojuvenis: O embondeiro e a cobiça do senhor Hiena (Fundza, 2021); A aldeia dos Cajueiros mágicos, O Artesão e os macacos malabaristas e O Cão, a Lebre e o Pássaro (colecção LER PARA COMEÇAR, AIDGLOBAL, 2022) Participou nas antologias: Contos e crónicas para ler em casa – Volume I (Literatas, 2020) e Idai – marcas em verso e prosa (Gala Gala Edições, 2020). É mestre em Teatro, com especialização em Teatro e Comunidade pela Escola Superior de Teatro e Cinema, IPL; e licenciado em Teatro pela Universidade Eduardo Mondlane. Em 2018 foi distinguido com o prémio de Artes e Cultura da Mozal, na categoria de Teatro, e venceu o concurso de poesia Ponte Maputo-Katembe organizado pelo Centro Cultural Moçambicano-Alemão.

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