É proibido proibir

Percorrendo a história facilmente cruzamos com episódios de proibição de determinados livros. Do ocidente ao oriente, há vários personagens que viram suas ideias impressas – ou antes disso – impedidas de circular livremente.

Um search no Google nos lembra do romance “Doutor Jivago” de Boris Pasternak. A obra chamou a atenção da Academia Sueca que lhe atribuiu o Nobel em 58 do século passado. Mas na Rússia soviética, onde nasceu, era combatido, de tal modo que foi impresso na Itália.

Ainda no berço de Dostoievski e Trótski, podemos encontrar exemplos do poeta Osip Mandelstam, de Vladimir Bukovsky e outros responsáveis inclusive pelo surgimento do samizdat – equivalente ao que hoje designamos por edição independente -, como um mecanismo de contornar ao sistema de proibição instalado.

Entre as teias dessa tradição nos esbarramos com o episódio do romance “Ulysses”, de James Joyce, cujo centenário celebrou-se no ano passado. Foi travado pela censura. E detalhe: o censor tinha lido apenas 42 das 732 páginas do livro quando decidiu proibir. E hoje, essa obra é celebrada no Reino Unido e está integrada no cânone mundial.

Os escombros de um passado que pensávamos obsoleto, ainda na Grã-Bretanha, não escondem a sorte do poeta e romancista D. H. Lawrence que viu queimado o seu romance “O Arco-íris” e apreendida a coletânea de poemas “Pansies”. Perseguição que chegou ao cúmulo da polícia invadir uma exposição e proibi-la por dedicar-se obra do Lawrence.

Nos Estados Unidos, indo mais para trás no tempo encontramos o combate a Harriet Beecher Stowe. A razão foi a publicação, em 1852 de “A Cabana do Pai Tomás”, um romance antiescravagista. O instalado regime presidido por Franklin Pierce proibiu a circulação da obra.

Antes já a Igreja Católica tinha feito o mesmo com muitos livros, sobretudo na idade média. Aliás, mesmo a Bíblia levou um tempo para ser traduzida em várias línguas além do latim, que era na altura conhecida por poucos privilegiados. E houve uma resistência em permitir, de todo, o acesso a Bíblia por parte dos cristãos pertencentes a plebe de modo a evitar, alegavam, distorção da palavra sagrada.

Países como a China continuam ainda hoje a censurar livros e a controlar a sua circulação. Em 2020, por exemplo, a BBC reportou um professor chinês a lamentar a retirada dos livros “A Revolução dos Bichos” e “1984” de George Orwell das prateleiras das escolas, em obediência ao que por cá é conhecido como “ordens superiores”.

Mais próximos de nós, temos o exemplo do angolano Luandino Vieira, que viu proibida circulação da colectânea de contos “A cidade e a infância”. Salazar e a sua empresa fascista temiam o efeito que este e outros como “Terra morta” de Castro Soromenho, teriam nos leitores. Como temia a poesia de combate que circulou na clandestinidade, em Moçambique.

Controlar a circulação de ideias é desde a formação de sociedades estruturadas uma ferramenta para limitar a expansão do pensamento. A compreensão do mundo determina o estado de coisas num contexto específico, num tempo e lugar.
O conhecimento é a arma mais eficiente de que dispõe o Homem. O acesso a ele é uma espécie de portal para outra percepção do mundo. Pode ter como consequência o reposicionamento de paradigmas e formas de ver o mundo. Enfim, desloca o possível.

A sociedade tem de estar vigilante a essas tendências que ameaçam depois das liberdades, a capacidade de interpretação da realidade. Não por acaso, no Brasil governado por uma ditadura repressiva, em 1968 quatro meses depois do Maio francês, no III Festival Internacional da Canção, Caetano Veloso cantou: É proibido proibir.

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