O último trago da indecisão

Ele dormiu numa cama cheia de areia, afastou os lençóis da Ex, sentiu o cheiro da actual inquietude, a loção sofisticada que é coberta pelo suor de dias felizes, que hoje não vem, amanhã não tem cara de um bom dia, porém, está tudo bem. Deita-se nas roupas limpas e sujas, sequestrador que mal consegue ameaçar os seus reféns. Não há resgate, não há debate, ele já se debate entre pensamentos imundos e o submundo que sua autodestruição constrói. 
Levanta, os pés tocam o tapete preto, sente o húmido e o cheiro delicioso da manhã, aqueles lábios ingénuos que se entregaram, deixaram a água percorrer sem rumo a sua indecisão, mas hoje não, amanhã também, nenhum serão, o muro caiu, esmagou o homenzinho preso na indecisão. A água? não! Há magoa sim, afaga, assim, as roupas, que dão outra sofisticação ao corpo que ainda precisa do sono que a labuta proibirá. O relógio no pulso atesta que mais uma vez ele atrasará e pagará, com intervalos de sono que a chefia reprovará. 
Cochila e sonha, o início da noite entra, a mochila empenha um peso menor que a consciência cheia de insinuações que lhe desmotivam a limpar a cama. Com frieza e calma, mergulha seu corpo no contentor, sem cobertor, persegue a gripe, mas sabe que não há desculpas para falta, que destino, tudo culpa do empregador. Olhos azuis, tira os espinhos, não tem disciplina para erguer a cruz, no século XXI não há Jesus, talvez Manuel, as orquídeas sem fôlego, não há fôlego, não há estofo, meu personagem principal é um estorvo, toma dois goles de whisky, sente o gin, não há Martini, a água da Katembe sabe a rosé, a dor dos outros é tema para os escritos da KKK. 
Farto da escravatura, deita-se no chão mendigo, apalpa o pénis, procura no contentor, algum alento, está descalço, sapato aperta, mas sem ele é quente o asfalto. Pede moedas, tem suas quedas na Mafalala, acorda, em Goa, e sabe que a India dos cabelos grisalhos está longe do seu paje. Contramaré, cheira o pó que um dia fez mulher, aqueles seios tesos fazem com que o último parágrafo inicie bem. 
Mas um porém, nada está bem, já nem tem casa, calvo e sem ninguém, mas tudo bem, a fumaça vem, mesmo sem um vintém que a vida dá. Diz que não dá e olha bem, o mendigo, enquanto entra no Civic que hoje tem e anda. Passa ponte, sente a maresia, balança, os dedos, com o mindinho, em poses marciais. Deita-se na cama limpa, come a comida, quente, mas a refeição sempre será fria, mesmo com o micro-ondas ali. Colheradas em rali, sem etiqueta, onde está a Preta? Ali no lavatório, pronta para colocar a loção sofisticada, e amanhã com a mão esticada e os dedos em riste depois de lhe dizer em mensagem que tudo vai estar bem, mas será que será assim para sempre? Não sei também. Mas tudo bem. Mas tudo bem? Não sei, mas ele respondeu obrigado, tudo estará bem.

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