Esse país está bom*

Matanhane apanha já as últimas batidas de “Tudo que você podia ser” do Clube da Esquina, da estação de rádio que estava sntonizada, pouco depois de ligar a ignição nas bombas BP do Alto Maé, segue a música “Oya” de Abáse e Luciane Dom, ambas selecionadas por António Jamal, que está no ar. Com os olhos presos ao parabrisa, vibra ao ritmo dos acordes da guitarra, persegue as imagens dessa canção que é uma mistura de muitos brasis e mundos. – Música para gente de bom gosto – não deixa de repetir a voz deste locutor que até já se confunde com a própria rádio.

Escolhe, já na via, o buraco a poucas centenas de metros da agitada esquina entre as avenidas Guerra Popular e 24 de Julho na hora em que o dia começa, no inverno, a se preparar para descansar a mão de obra que move a cidade. 17:58, esclarece o relógio do painel vermelho do carro.

De um Honda Fit prata estampado Salmos 23 em cor branca com a fonte georgia no vidro traseiro, a sua frente, sai a mão que entrega dinheiro em troca de um Dairy Milk que o ambulante corre para fazer o delivery no veículo já em marcha lenta, antes do semáforo que está no amarelo voltar a abrir.

Tutuma, tutuma – incentiva, ofegante, o seu igualmente magro companheiro de vestes gastas, que carrega uma caixa-montra composta por simba, lays e doritos, a correr atrás, com menos velocidade.

Nos passeios, entre choques, cotoveladas, esquivas apressadas, cruzam-se várias pessoas, algumas com auscutadores a ouvir rádio, podcasts e músicas, outras com a mente a fazer cálculos de equações que não se resolvem. Os mais acobratas e experimentados, fintam-se, num passo rápido e atento, no asfalto com carros a andarem.

Matanhane muda de estação…

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– Esse país está bom – ouve-se do Protetor Vaz, um comentador político com fama de intelectual, na rádio. O Alberto, outro profissional de opinião, igualmente convidado residente, sobrepõe-se ao moderador Emílio Manhique e pergunta – como assim, está bom? – ao que lhe é respondido: está favorável. – Mas, meu caro ilustre, acompanhou na quarta da semana passada o noticiário? – questiona o Alberto, a quem alcunham de populista. – Já vais começar a associar coincidências tristes com essas suas invencionices patrocinadas pela mão externa – reagiu o Protetor. Emílio tenta recuperar a palavra. – Vaz, mas o ilustre soube que a senhora era avó e que já tinha perdido o seu único filho nas matas a proteger os heróis da foto, quando acabou atropelada no Xiquelene, a fugir da Polícia municipal que lhe queria arrancar a bacia de limões e tangerinas que arrancava do seu quintal? – prosseguiu Alberto. – A polícia está para impor a ordem e a postura urbana, você que vive na cidade sabe que quem foge da polícia é ladrão, não sabe? Esse país está bom…antes mesmo de terminar foi cortado pela música “Cherry” de Paulo Flores, na sequência “Yaba Buluku” de Yaba Buluku Boyz, na colaboração com Burna Boy.

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Escolhe outros buracos, seguindo a uns 40 e poucos por hora. Noutro semáforo, um rapaz, de talvez uns 12 anos, sem o olhar inocente que o seu semblante promete, bate o vidro a anunciar que vende ocb e cigarros. – E aquela outra cena também – frisa.

Mal consegue responder porque na esquerda, um tipo envelhecido de talvez uns 28 anos, que veste uma camisola do Desportivo de Maputo, pede-lhe, com fingida cortesia e aparência de quem fugira instantes antes de uma cirurgia dolorosa ou recém-liberto de uma interminável e insuportável tortura com a voz entrecortada e fraca. – Boss, no kombela dez paus, quero comprar um bread com badjias, por favor – pede, com o olhar ainda distante e desconcertado.

Não deixa de causar algum espanto e surpresa o seu tom imperativo e autoritário com o qual acrescenta – Não estou a roubar, estou a pedir. Não estou a roubar, repete – como se o automobilista tivesse alguma culpa pela sua situação e por isso a responsabilidade de o satisfazer.

Para trás ficaram os cruzamentos com a Guerra Popular, a Felipe Samuel Magaia, Karl Marx e Olof Palm. Próximo a Escola Industrial ultrapassa um chapa que está a parquear em obediência ao agente da polícia de trânsito, repara para o interior do minibus: homens, mulheres, estudantes, adolescentes, crianças, jovens que apinhados ainda dão um jeito de se entreterem nos smartphones, outros a organizarem o que levam consigo enquanto se acomodam, outros espreitam os carros que passam.

Sorri de vergonha, ao recordar que na folha da sua juventude, enquanto estudante universitário, escreveu promessas de revolução que publicou no blogue que tinha com amigos, na expectativa de mobilizar outros à emancipação. Lia excertos de livros, artigos de jornais, resumos e vídeos no YouTube sobre o Marxismo e o Socialismo. Seu sonho era tirar o proletariado da cegueira com a luz do saber. Actualmente nem boleia dá ao colega do escritório.

Quer acender outro cigarro e descobre que acabou o maço, encosta próximo de um ambulante. Vasculha no porta-moedas e nem um centavo. Deu ao tipo lá atrás. Saca a carteira do bolso e dela retira uma nota de 200. Devolve os trocos ao bolso da camisa azul de linho, a pensar: poxa não terei lá atrás patrocinado um jankie? ou apoiado ao ócio? Mas não podia ser cristo noutra forma a me testar? Sei lá, já dei… faz uma travagem brusca para não bater no Hyunday azul escuro a sua frente e no mesmo instante escapa a uma ultrapassagem a esquerda de uma Mark X preta de vidros fumados que é seguida por uma vitz vermelha…

Continua na 24 de Julho, mais para o centro da cidade. Outro semáforo. Aciona o esqueiro, acende, inala, persegue o fumo que desce e se perde algures peito adentro. O vermelho daquele semáforo parece que só vai dar para o verde em 2050.

Vira para o lado direito, e dá-se a contemplar a espessura de um escarro pesado, quase amarelado e acinzentado a estoirar estrondoso no passeio. O tipo de gorro preto que cuspiu, veste uma t-shirt XL num corpo que talvez mesmo uma S era capaz de parecer cabide, calças caqui, ambas peças azuis em tons de oceano e turquesa. Apressado, fala sozinho, a fumar um cigarro entre os carros estacionados no passeio.

Repara para o seu cigarro que no segundo trago não sabe a nada, senão a obediência a nicotina. Fora do habitual, no semáforo da esquina com a Salvador Allende, um puto parecido com aquele jogador da música de Milton Gulli, surge a lavar-lhe o vidro num acto um tanto furtivo. Entregue a sorte, se aproximam a senhora das castanhas e a das maçãs que se põem a discutir sobre quem chegou primeiro. Está alheio. O puto que limpa o vidro obstrui a visão analítica que faz para escolher os buracos do troço.

***

Emílio Manhique pede aos convidados para se despedirem do programa Politiquismo. – Continuaremos a apoiar as forças vivas do país, que não obedecem a mão externa, que actuam em defesa do patriotismo. Votos de uma óptima semana para quem nos acompanha – conclui Protetor Vaz. – Grato por nos acompanhar desse lado, espero que o ouvinte não se deixe levar por quem se sente seguro por que durante o voo sentou-se próximo a saída de emergência – se despede o Alberto. Digo adeus – retoma a palavra o Manhique – na promessa de cá estar na próxima quarta-feira para debater, com os convidados habituais a questão da habitação para a juventude em Maputo. Muito obrigado pela sua companhia, caro ouvinte convido-lhe a continuar na nossa companhia que já a seguir Edmundo Galiza Matos estará em antena e reproduz “Munga lili” de Jaco Maria…

*Título inspirado na música “Esse país” de Paulo Flores, do álbum Independência

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