Esses seres que somos em update

A identidade é um exercício permanente de construção e reabilitação individual. Nesse ponto estamos a concordar com Zygmunt Bauman e outros protagonistas da pós-modernidade como Jean Baudrillard, Gilles Lipovetsky que a entendem como algo em permanente metamorfose.

Há já até quem opte, no mesmo fio,  reconhecendo que o mundo estático de indíviduos que se moldam pelos mesmos hábitos, gostos, posições e ideologias ao longo de toda uma vida já não existe. Há quem opte, com efeito, por por falar numa espécie de, a semelhaça dos sistemas operativos dos nossos smartphones e computadores, em identificações em updates. A existência instável individual nalgum momento encontra uma dimensão colectiva. Pois não se existe só. Somos ainda que com as distinções variáveis parte de um todo.

Sem darmos por isso, de tal modo envolvidos que estamos, produzimos e herdamos rotinas – a nossa coreografia e performance,  a pensar com Jaques Ranciére – que os antropólogos, sabiamente, integram no conceito de cultura: rituais.

No imediato, rituais podem ser reduzidos a actos específicos (ritos de iniciação ou de purificação). Sara Jona, no livro “Moçambique, margem sul: Arte, interculturalidade e outros textos”, cristaliza a abordagem da corrente compreensão de rituais. Alarga para a ideia de elementos que compõem o nosso ser e estar no quotidiano.

Em textos curtos, de leitura simples e rápida – como a crónica se permite ser – a autora deste livro nos leva a conhecer ou e a recordar alguns hábitos e costumes, saberes sobre algumas culturas – que ela sempre faz questão de pluralizar – moçambicanas.

Do sul, são dominantes, no livro, o Xironga e Xichangana, ambas herdadas de Maputo, cidade onde nasceu e cresceu. Há igualmente uma mescla com Guitonga e Xitswa, de Inhambane, que são as de origem dos seus pais. Ou seja, assumindo a língua como a residência de uma cultura, estamos a falar de alguns marcos que traçam, em grande medida o seu mapa cognitivo primário. E, nessas, acessamos a inescapáveis contornos e nuances sobre outras culturas nacionais do centro e norte do país, que surgem como tópicos menos aprofundados.

Nesse exercício que assume um olhar cosmopolita e metropolitano, testemunho em parte das suas vivências e passagens por outras geografias, Sara Jona morou alguns anos em Portugal, compara essas culturas moçambicanas com outras improváveis na aparência. E o faz em benefício da compreensão de certos modos de estar que mudam-se os contextos, as línguas e paisagens, porém, no final (mesmo no princípio e no meio) somos, essencialmente,  seres humanos. Obviamente, seria redutor fruir esta obra apenas a associando ao contexto cultural que envolve a autora, pois é sempre com as lentes acádemicas da sua vasta formação em questões culturais. Sara Jona é ensaísta no campo da literatura e da cultura moçambicana, doutorada em Literaturas e Culturas em Língua Portuguesa pela Universidade Nova de Lisboa (2015).

Sara Jona Laisse

Deixando, de próposito, de lado o seu background teórico. Indo pelo caminho da cultura. É exemplo dos contactos que teve, as suas vivências e a relação com os textos que escreve a regra sobre recém-nascidos aplicados pelos guitongas que são iguais aos judeus: 40 dias sem tirar o bebé de casa, como se pode ler no texto intitulado “Rituais pós-nascimento: Kuxlomula mamani ni kuhumissa mwana”. Ainda pode-se acrescentar “Minha sogra merece, as outras também”, “Banco de tempo, solidariedade e o legado da minha mãe”, entre outros nos quais sugere reflexões sobre o Xitique, lobolo.

O facto de Sara ser professora talvez explique a notável necessidade de explicação, ao detalhe, que norteia as recorrentes descrições que vai fazendo nos textos, como quem pretende, no limite, ser o mais esclarecedor possível. Recordando, a luz do mapeamento feito por Ramiro Marques, no livro “A arte de ensinar”, o modelo pedagógico cultural (que não cabe neste breve texto detalhar).

Nalguns aspectos, quando aborda o grupo linguístico Guitonga, no qual fui educado, pode-se estabelecer um diálogo com o álbum “The story teller” de Jaco Maria, que através da arte conta pequenas estórias e transmite os valores e crenças transmitidos de geração para geração naquele meio.

De modo geral, o livro é todo suportado por lamparinas de esperança num mundo melhor, de crença no amor e de saudade de um mundo que existiu (o passado de comunhão dos anos 80 e 90, na nossa tentaiva de socialismo) e as flores que nascem de plantas que desabrocham da rocha.

Referir que este livro, sob chancela da Gala Gala edições, é o segundo volume de uma série de artigos que Sara Jona Laisse publicou no portal português 7 margens e na imprensa nacional, tendo sido “Entre Margens: diálogo intercultural e outros textos”, o primeiro. E o mesmo vem acrescentar a uma produção que já tem, por exemplo Entre o Indico e o Atlântico: ensaios sobre literatura e outros textos, Letras e palavras: convivência entre culturas na literatura moçambicana; Em coautoria, pode-se referenciar, entre outros o “Dicionário Português-Bitonga-Português (coautoria com ‘Amaral Bernardo e Eugénio Filipe Nhacota)”, Cultura e identidade organizacional: um diferencial para a competitividade das empresas moçambicanas (com Lecy Rodrigues Moreira).

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