Ídasse Tembe: Não se pode aprisionar o pensamento!

O primeiro dia de Julho de 1955 testemunhou o nascimento daquele que viria a ser um dos mais importantes nomes das artes plásticas no país. Ídasse Tembe, natural do vale de Infulene, na província de Maputo, vem de uma família alargada, com 10 irmãos, filho de um pai que teve três mulheres e que passou a vida dividido entre África do Sul e Moçambique.

Dos irmãos é o único com veia artística e acredita a ter herdado de um irmão mais velho do seu avô que fazia esculturas. Diz que teve uma infância comum, vivida entre Infulene e Chamanculo.

Tem as mãos cheias de habilidades e o cérebro aos saltitões de tão vivo que está. Esteve recentemente na Fundação Fernando Leite Couto (FFLC) para partilhar o seu percurso artístico, numa conversa moderada pela escritora Sónia Sultuane.

Este Ídasse Tembe que fala sobre as suas estórias e histórias aos amantes das artes, sentado, com os olhos a brilhar, sereno e sempre a encarar a plateia nos olhos, é fruto de diversas experiências artísticas. Em 1979 fez o curso de animador cultural no Centro dos Estudos Culturais, com os seus mestres Malangatana e Domingos Manhiça, onde adquiriu conhecimentos de Antropologia, História da Arte Moderna e Arte Africana, Música, Fotografia, Teatro, Pintura, Cerâmica, Desenho e Xilogravura. Sob a orientação de António Quadros (pintor de nacionalidade portuguesa que viveu em Moçambique) completa o curso de comunicação gráfica, trabalha no Instituto Nacional de Cinema e cria o Departamento de Arte. Integrou o movimento artístico Charrua. Membro do Núcleo de Arte. Membro da Associação Moçambicana de Fotografia. Membro da Associação de Escritores Moçambicanos… a lista é extensa!

Multifacetado, participou na criação da Revista Charrua e, inclusive, fez o desenho da primeira capa do veículo que se pretendia fosse diferente do que já existia no mercado, que desse espaço a novos autores e que abraçasse a variedade cultural que faz Moçambique um país belo. Mas também havia o sonho de criar uma revista com um projecto gráfico diferente, com uma escrita alternativa e ilustração fora dos padrões.

“‘Charrua’ foi um degrau importante na minha vida. Nasce porque o momento exigia. Acabava de nascer a AEMO. Mas antes tínhamos ‘Totocanto’, que fazia a dinamização da divulgação da literatura moçambicana e de outras manifestações culturais. Entendemos que era momento certo para aquela responsabilidade. Não havia mais ninguém para fazê-lo”.

Apesar de ter sido uma iniciativa que o próprio Ídasse considera bonita, o artista revela que não foi fácil fazer a revista chegar ao público. “Houve sabotagem. O material desaparecia nas gráficas. Mas nós tínhamos paixão no que queríamos. Passámos por dificuldades e há vezes em que nem dinheiro de transporte tínhamos, mas seguimos”, esclarece, a contar que foi também imprescindível o apoio de Rui Nogar, José Craveirinha, Luís Bernardo Honwana, entre outras figuras que já tinham carimbado o seu nome na vida artística do país.

Percurso literário à parte, Ídasse tinha antes se aventurado no cinema. Foi ele quem criou o Departamento de Artes no Instituto Nacional do Audiovisual. O país vivia a euforia dos primeiros anos da independência, onde se tinha adoptado o modelo socialista e, por via disso, o surgimento das aldeias comunais. Ídasse foi contratado pelo Instituto Nacional de Audiovisual como um angariador de vontades de se juntar às aldeias comunais. “Fazia desenhos animados para cinema que era para projectar em zonas que se conscientizava as pessoas para saírem das zonas de conflito”.

Foi no cinema que nasceu a sua relação com os escritores, quando teve a oportunidade de trabalhar com nomes como Rui Guerra, Luís Carlos Patraquim, mas antes já tinha algum contacto com Eduardo White, Juvenal Bucuane, Ungulane Ba Ka Khosa, entre outros.

A sua ligação com o escritor Eduardo White era algo especial. Os dois tinham um projecto chamado “Caderno Verde”, que consistia em criar obras de arte a partir da meia-noite, o que significa que Ídasse só podia pintar ou desenhar para este projecto a partir da zero hora e White só devia escrever à mesma altura.

A admiração era mútua e Eduardo White chegou a escrever textos a falar de exposições de Ídasse, mas também a mostrar o lado mais humano do artista.

UM DESENHADOR

DE CAPAS DE LIVROS

Desenhar a capa da primeira edição da “Charrua” foi só o início de um mundo que abraçaria a Ídasse com duas mãos até hoje. Fez capas para Eduardo White, Carlos Patraquim, Marcelo Manguane, entre tantos outros. Neste exercício de ter a responsabilidade de abrir as janelas para o mundo, sempre procura se aproximar o máximo possível do texto para que possa materializar uma imagem que não foge à temática abordada na obra. É por isso que Ídasse não aceita ilustrar qualquer obra sem que antes a tenha lido.

“Primeiro temos de tentar namorar o olho de quem vê a capa. A capa chama atenção. Antes de ler tem de gostar da capa. Mas é preciso encontrar este casamento entre o texto e a capa. Tem de ser uma relação infinita. Há casos em que dizem que não é preciso ver o texto. Eu digo não. Não fica bem. Para mim não é aconselhável, não me dignifica. Eu gosto de beber o texto e depois ver o que sai de mim”.

Rebobinando a memória, recorda-se que fez muitos trabalhos que nem chegaram a lhe ser pagos. “Era tudo na amizade. Até cheguei a pensar que um dia seria padre”.

Hoje, com longos anos de experiência, compreende que o que faz criar uma obra de arte é o momento. Pode ser de alegria ou de angústia, de tristeza, solidão… “Há momentos em que não conseguimos decifrar a situação que nos faz criar, não conseguimos explicar. Pode ser satisfação ou insatisfação. White diria que depende do orgasmo. Há obras conseguidas em pouco tempo. Mas há as que levam anos. Há obras que fiz há décadas, mas até hoje me dão vontade de mexer. Há sempre alguma coisa a acrescentar”.

Tanto escrever, fotografar, desenhar e pintar são, no fundo, exercícios de libertação. “Às vezes, tens fantasmas que queres espantar quando crias uma obra. O que sei é que sou muito exigente comigo mesmo. Por isso tenho medo de ver pessoas a se dirigirem a uma sala de exposições para ver um trabalho meu”.

Ídasse Tembe, aos 67 anos de idade, é um ser humano que ainda sonha e quer fazer coisas. Que não acredita que seja possível ficar sem inspiração enquanto se estiver vivo, que não teme a morte porque sabe que é inevitável, que quer ser um eterno provocador e que sabe que não há prisão possível para o pensamento enquanto exercício de liberdade, segue sendo um Homem apaixonado pela vida, sereno mas alerta: “tenho um vulcão dentro de mim. Não se admirem quando nos próximos anos tirar muita coisa. Tenho uma criança dentro de mim que não pára, não sossega. Com esta tranquilidade, ninguém imagina esse vulcão aqui dentro. Isto porque sou um pássaro. Os pássaros são livres, tal como o pensamento. Não podem ser aprisionados…”!

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