Conto de Pedro Mayamona

Texto de Pedro Mayamona

AS TRÊS VEZES EM QUE ME SENTI COMPLETAMENTE FORA DO MAPA

Professor de Educação Física numa das renomadas escolas do bairro Talatona, província de Luanda, sou o Mateus das Bolas Vazias (MBV), nome que me foi atribuído pelos alunos por encontrarem sem ar todas as bolas que eu transportava várias vezes para as aulas práticas.

Não nasci num berço de ouro, foram as mãos de um luando que me acolheram sob os cuidados de uma mãe-galinha. Pai foragido, o que vinha a acontecer depois de ele ter trocado a casa que ficava no bairro dos Kwanzas (rua do Cala Boca Antiga), por outra em Cacuaco (também município luandense), fruto dos assaltos constantes de que éramos alvos na antiga residência, quase uma manção presidencial que, nas vistas e ao alcance da esmagadora mão do mundo, dava para o centro do centro do mercado.

Cresci somente ao lado da figura materna, minha prestimosa mãe, apesar dos pés na cova e do pão amassado pelo diabo que nos sustinha, não aceitava que eu falasse calão, argumentando que o filho dela não devia comunicar em linguagem de marginais, nem com eles se identificar por nada neste mundo. Foi assim que andei na linha e amadureci em formato de carris.

Já grandinho e a errar pelo universo do amor, senti-me perdido por uma menininha, cujo nome, Clarinha, fazia jus à ardente beleza.

Tive de colocar barbas de molho e técnicas de embuste em acção para chegar ao coração da Clarinha. Uma noite, acompanhado com ela, saindo da antiga Liga Africana, onde íamos ver uma peça teatral, a fome apertou, tomando conta de nós, decidimos comer hambúrguer na hamburgaria mais próxima.

Pendurados ao pé do moço que nos atendia, soou uma voz aos berros: «MBV, do Litteragris!». Mergulhados numa escuridão profunda, porque era a frágil hora dos morcegos, com os olhos que nada viam, olhei para a fonte sonora com o meu nome à estampa e vi unicamente um Toyota Land Cruiser que, na lucidez da sua inocência, se desprendia da estrada mal vestida de alcatrão.

Na tentativa de transmitir ausência de educação, uma vez que, dependendo de mim, não respondia ao zumbido de qualquer diabo desconhecido, Clarinha bateu-me levemente ao ombro, dizendo: «Dá-lhe um rala, pá!».

Vi fumo sem rumo entre acção e expressão. Sem saber o que fazer, pois não me ocorria nenhum significado associado àquele termo proferido no sentido subjectivo, e, indefeso, assisti a Clara dar-me outra palmadinha, agora mais letal, acompanhada de um vozeirão que me trouxe à memória a imagem de uma mulher de bóina vermelha, botas pretas e farda verde alourada: «Oh Mateus, acena-lhe com a mão, pá!». Com medo de ser chicoteado pela terceira vez, dei-me por avisado e obedeci à ordem da General das Forças Armadas.

Reconheçamos que a minha amiga era bem educada. Se calhar, é por isso que conservo doces lembranças dela.

Pintura de João Timane
Pintura de João Timane

Outra vez, detidos na cabine das instalações de uma Rádio em Luanda, como o hábito fazia lei, a locutora brincava com o microfone, fazendo perguntas descontraídas aos comentadores residentes. Chegada a minha vez, ouvi: «E tu, qual é a tua banda?». À deriva e em sonho acordado, sem chão, vi um mar de galáxias em corrida desordenada na minha mente… mais a polidez que me caracterizava… emudeci. A locutora, irritada e ofendida na sua dignidade de mãe grande (não obstante a doçura fêmea e a presença possessa que a particularizavam), gritou: «Jovem, ó jovem… Que tipo és? Estou a perguntar qual é o teu bairro, poxas?!». Envergonhado e ferido pelo orgulho de machão, com o dedo indicador a coçar à cabeça, só consegui responder: «Ah! Afinal? Não sabia!…».

Pela terceira vez, debaixo da atmosfera da Covid – 19 –, com a calamidade de restrições que o momento impunha, eu caminhava por uma ruela do Projecto Nova Vida, urbanização cuja designação não se ajustava às telas nem aos grandes focos de lixo em tudo quanto era canto.

Caminhando e cantando, encurtava a distância, até que me deparei com um motoqueiro que me perguntou: «Como é, wi, ali tem bongó?». Outra vez perdido num mundo que não era meu, pensei: «Será que ele pretende saber se tenho dinheiro?», em função do vocábulo «mbongo», traduzido do lingala (um idioma considerado koiné, ou melhor, língua comercial), que não era o caso. «E se eu tivesse valor pecuniário, como era possível transportar-me tendo uma senhora em companhia e já montada por trás da sua motorizada?». Continuei a dar voltas ao miolo, fazendo-se tarde para a tão esperada resposta, o moço da mota foi embora.

Momentos depois, em diálogo com uma jovem promessa da música gospel daqui de Angola, fiquei a saber que bongó era polícia e o homem motorizado na sua rotina diária à procura de pão, não pretendia problema com quem quer que fosse, muito menos com agentes de manutenção da ordem e da segurança pública, daí me ter feito a pergunta de salvação, tentando abster-se de alguma irregularidade da sua parte ou da parte das autoridades que, às vezes, excedem nos cuidados com os pacatos cidadãos. Feliz ou infelizmente, não o pude ajudar, porque mais adiante havia mesmo bongó.

***

Pedro André Mayamona, que artisticamente assina Pedro Mayamona, é natural de Luanda (Angola); autor da obra poética Perdido Amor (2020); estudou Ciências Humanas na Escola 6038 (2010 – 2012). Actualmente, é estudante de Ciências da Educação, licenciando-se em Ensino da Língua Portuguesa pelo Instituto Superior de Ciências da Educação de Luanda (2022).
Professor, escritor e crítico literário, publicou Os Estatutos das Línguas em Angola no Jornal Cultura Angolana de Artes e Letras (2016), tendo colaboração dispersa em revistas, jornais, blogues e outros periódicos angolanos, de Moçambique e da Galiza.

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