Textos de António Manna
Dormindo o sono dos injustos
O ogre omnisciente do cimo da catedral governa a maldição
na noite inquieta sentado na sombra do crucifixo luminoso
elabora o próximo ato tétrico dissimulado sob a forma de unção
nos olhos incandescentes de febre revê a miséria até ao osso
O esconjuro emana do cheiro a enxofre do espectro e paralisa-nos
conformadas as ostras coladas à rocha abdicaram do imenso oceano
mascarados de cidadãos erramos palhaços neste carnaval infernal
o núcleo da pedra preciosa brilha pela racha na rocha que a oprime
O ogre invoca os demónios aos gritos com velhas palavras de ordem
que os malditos irrompam das suas tumbas e se vistam de timoneiros
que selem os ouvidos aos lamentos e virem a cara ao odio dos olhares
que recrutem mercenários sanguinários e acabem com os sobreviventes
A palavra tem o poder de plantar a esperança e de mata-la a sangue frio
as vozes da indignação gritadas até à exaustão enrouquecem e calam-se
enquanto o ogre devora as crianças decapitadas a sopa de capim mata a fome
que se abram as veias de todos nós e que sangremos até que a inação finde
Tulipas de sangue
in memória de Siba Siba Macuácua
Os deuses não devem estar loucos, eles são loucos
nós não estamos a enlouquecer, nós somos loucos
num ápice saltamos friamente da certeza lúcida do bem
e sem escrúpulos arrancamos pela raiz a vida de outrem
o rebento da tulipa de manhã ao surgir o botão do sol,
vulvar desenrola-se a vermelho até à poça de sangue
coagulado no chão sujo de confettis pisoteados de noite,
como uvas maduras esmagadas pelo ranger da guitarra
o lamento das fogueiras negras em labaredas de nervo,
solos gritos frenesim e a alegria a correr pelas cordas
que giram nas mãos de meninas de farda e meias altas
e o riso enche de inveja os papagaios fora das gaiolas
a voar de cabeça a vítima foi atirada pelo poço das escadas
e explodiu no vaso do rés do chão, cheio de tulipas abertas,
escarlates, fagulhas luminosas de rubis desbotados choveram
de baixo para cima, o horror estava vivo e os demónios à solta
na rua à frente do prédio abriram-se crateras de sangue e pétalas,
do céu trovejaram vozes a clamar pela vida dele e das tulipas,
ainda hoje nos terraços dos prédios da baixa nascem negras
tulipas que nas noites de lua nova choram os blues dos esquecidos
Se quiseres, contar-te-ei do monótono bater do coração
essa oração a nenhum deus falível, a nenhum deus surdo
se quiseres dir-te-ei do sino no alto da torre, o farol da ilha
esse enfeitiçado silvo de flauta, o alento falso do náufrago
Se quiseres, permanecerei ausente, não declamarei desafinado
os dias que passam iguais, nem as noites que não se apagam
se quiseres não partirei as asas, deixar-me-ei cair em tentação
nesse afã de me perder encontrando-me, nesse vero equívoco
Se quiseres saber do chão onde dormem os que não sonham
esses sobrados poéticos de cartão, que levitam no breu dos vãos
se quiseres acreditar que o sol nasce para todos é teu problema
essa mentira velha morde a língua no retrato das filas da sopa
Se quiseres, ensinar-te-ei do brilho dos olhos que riem, do amor
da única cor que falta ao arco-íris para se achar o pote de oiro
se quiseres também posso emudecer, calar os rumores, serenar
deixar que o acaso se vista e de surpresa em surpresa sucumbir
***
António Francisco da Poça Manna, 65 anos de idade, natural de Maputo e com residência alternada em Vilankulo e em Lisboa. Autodidata e apaixonado pelo belo, teve desde sempre uma ligação profunda com as artes, sendo os livros e a música a paixão maior e incondicional.
Na década de 90 publicou alguns textos no Savana com o pseudónimo de António F.
Em 1999 criou um espaço cultural e de promoção de arte na baixa de Maputo, na Rua de Bagamoyo, que se chamava Artebar.
Recebeu uma menção honrosa na 1ª edição do Prémio Eugénio Lisboa com o livro “Bebi do Zambeze” composto por quatro contos escritos nos anos 80.
Publicou na Amazon um romance intitulado “A rola elegante e os azuis diáfanos” e um livro de poesia intitulado “43 poemas noturnos”.