Armando Artur: “Craveirinha era de outro universo”

Por Pedro Pereira Lopes

Armando Artur (AA) pertence à lavradora, audaz e polémica “Charrua”, aliás, “Geração Charrua”: fruto da revista literária criada por jovens escritores em 1984. Em suma, clamando por espaço e pela REFORMA da literatura moçambicana (em oposição à “Poesia de Combate”, então vigente). AA só publica na segunda edição da Charrua-revista, em Agosto de 1984, na secção ESCOLARTE (concebida como “o tubo de escape para os jovens estudantes”), o poema “Apesar das tragédias” – na altura, ele estudante do Instituto Industrial. A partir da edição 5/6, de Agosto de 1985, AA passa a ser colaborador permanente. A edição 8, de 86, a última a ver o lume da forja, destacaria, em preparação, o seu primeiro livro, “Espelho dos dias”, AA tinha então 24 anos.

Decorridos 36 anos depois de sua estreia, com 12 livros publicados, poeta consagrado (Prémio José Craveirinha – Consagração, Prémio Consagração Rui de Noronha – FUNDAC e Prémio Nacional José Craveirinha de Literatura) e ex-gestor cultural (foi Secretário-geral da Associação de Escritores Moçambicanos, Vice-Presidente do Fundo Bibliotecário de Língua Portuguesa e Ministro da Cultura), AA diz, “Sou poeta, nunca deixei de sê-lo, mesmo em funções oficiais, embora agora tenha mais espaço para ser poeta a tempo inteiro”. Sobre o poeta, o escritor Marcelo Panguana, membro fundador da Charrua-revista, escreveu: “AA se torna [é] um poeta do seu tempo, moralista, pedagogo, reflexivo, sonhador, utilizando para isso a exacta metáfora, o poema breve, a palavra curta e transparente”.

Nos últimos três anos publicou de forma vertiginosa, “Muery, elegia em Si maior”, “A reinvenção do ser e a dor da pedra” e “Outras noites, outras madrugadas”, poesia, e “As minhas leituras e outros olhares”, que reúne ensaios sobre livros e autores. Para comemorar os seus 35 de carreira (em 2021), o escritor e professor de literatura Lucílio Manjante organizou “O rosto e o tempo”, uma antologia representativa da sua obra.

Esta entrevista aconteceu em Maio de 2018, numa das mesas do centro social d’Associação de Escritores Moçambicanos, e a provocante proposta era, para mim, um frente a frente geracional, afinal, o seu livro de estreia consegue ser mais velho do que eu.

Aquando da publicação do seu primeiro livro, “Espelho dos dias”, Fátima Mendonça, que escreveu o prefácio, vaticina: “um grau de modernidade até agora raramente alcançado”. Afinal, sempre se opôs à tradição…

(Risos!) Eu não sei se seria oposição à tradição… mas… eu sempre gostei de desafios, andar sempre um passo à frente. Não diria do meu próprio tempo, mas gosto de estar à frente dos desafios que abraço. Se calhar tenha sido nessa perspectiva que a Dra. Fátima Mendonça tenha lido o quadro, uma vez que ela acompanhava todos os meus passos literários. Talvez tenha sido por isso que ela tenha descoberto esta modernidade da minha poesia.

Em oposição à poesia que era feita na altura, onde é que o AA crê que estava essa modernidade, na ousadia?

Eu sempre acreditei na liberdade dentro da própria escrita, quer dizer, sempre assumi que “modernidade” era ser inteiramente livre no processo de criação literária, isto adicionado à necessidade de ter uma visão um pouco mais larga com relação às coisas.

Muito se tem falado sobre os novos poetas, que começam a publicar “muito cedo”. “Espelho dos dias” sai aos seus 24 anos. Não era cedo demais?

Não! Não! Fazendo uma leitura comparativa… da questão etária aquando da publicação da primeira obra, para o nosso caso [Moçambique], nós temos um Luís Bernardo Honwana que publica o seu bestseller, o livro “Nós matámos o cão tinhoso” – é um bestseller, não restam dúvidas – publica-o aos 19 anos de idade, portanto, 19 para 24 anos, há uma boa distância. Até porque me considero um autor que começou a publicar relativamente tarde, embora tenha começado a escrever aos 15-16 anos, de modo que aos 24 anos, não foi assim tão cedo assim.

Mas, por exemplo, os outros membros da Charrua, o Ungulani e o Marcelo, publicaram aos 30…

Sim, fui o primeiro a publicar de entre alguns dos meus companheiros relativamente mais velhos que eu mas olha que eu publico em 1986, logo depois do White e do Juvenal. Portanto, do grupo da Charrua, sou o terceiro a publicar.

O que é um facto curioso, pois olha que o Ungulani e os outros eram membros fundadores da Charrua, e mais velhos. Como é que se deu isso, sendo o AA mais novo?

Sim, é um pouco curioso, mas não tanto assim. Sabes, [Pereira Lopes], eu sou um escritor, um poeta que se considera formado pela Charrua. Sou produto da Charrua! Sem dúvidas! Mas por força das circunstâncias fui anterior a muitos dos meus companheiros. Mas, no fundo, um ano a mais ou a menos vai dar ao mesmo. Somos todos da mesma “panela”.

Deveu-se às suas ligações ou influências políticas?

Não, de forma nenhuma. Isso nunca existiu no nosso meio. O que sempre imperou naquele tempo e no nosso grupo foi somente a qualidade do texto. Os meus companheiros sabem muito bem disso. Literatura não se compadece com ligações ou influências políticas, em nenhuma parte do mundo. O texto sempre falou por si. Portanto, foi por eu ter terminado de escrever o livro antes dos outros, e também foi devido à qualidade da própria obra (risos).

A propósito da fundação que o Professor Francisco Noa atribui à sua poesia – “a insustentável leveza da palavra” –, como é que o AA se relaciona com a palavra, com a poesia?

Para todo e qualquer poeta, para todo e qualquer escritor, a palavra é o material de trabalho. Para mim, sendo poeta, a palavra até transcende o próprio material de trabalho. Se fores a ler alguns ensaios poéticos da Sophia de Mello Breyner Andresen, sobre a poesia, encontrarás lá um fenómeno interessante: ela diz que na poesia, quando se diz “água”, a “água” deve “jorrar” no poema. Isso é profundo. A palavra [na poesia] não está apenas para significar, está também para ser. A coisa nomeada tem que ser de facto… no poema. O Sartre, naquele livro, “As Palavras”, explica muito bem sobre o poder da palavra num texto. Cuidado, a poesia é coisa séria! Muitos dos jovens de hoje julgam que poesia é juntar palavras bonitas e zás… o poema já está. Mas poesia não é isso. Aliás, é muito mais difícil fazer poesia que escrever um conto ou uma estória qualquer.

E por falar em Sophia… há muito dela na sua poesia…

A Sophia foi minha tutora directa. Ela própria me formou como poeta. Nunca me esquecerei daquelas longas tardes ali no Largo da Graça onde ela vivia, em Lisboa, a falarmos sobre poesia. Foi quem me orientou nas minhas leituras.

Já agora, “a poesia magoa”, como referiu num poema?

A poesia efectivamente magoa. Antes de ela acontecer no papel, ela tem que ser profundamente interiorizada. Portanto, este processo de interiorização das coisas que nos rodeiam, daquilo que nos mexe por dentro, do amor que borbulha em nós, este processo todo, enquanto não magoar, não gerará poesia nenhuma. Primeiro você tem sentir, e só depois é que vem todo o tecnicismo.

É um magoar interno…

Sim, magoa o autor, o sujeito poético…Você tem que transportar consigo inclusivamente as dores que não são suas para o acontecimento do fenómeno poesia. É essa tarefa que também dói ao poeta, mesmo que não tenha sido incumbido por ninguém.

E exteriormente, a poesia não deverá magoar?

Um poeta não pode pensar no exterior, de modo a evitar interferências, contaminação, uma espécie de autocensura, etc. Ele não deve pensar no sujeito leitor. Ele deve somente interpretar as coisas, os outros, a dor que está por dentro de outrem. A missão do poeta é apenas escrever, e o que acontecer depois já não será da responsabilidade do sujeito poético.

Este é um verso seu: “Molócue serpenteia/ como uma hidra sem sofisma”. Nunca pensou em retornar à terra natal?

Nunca sai da terra natal. Eu tenho familiares lá, e um pouco por toda a Zambézia. Mas foi Molócue que me viu nascer e, por isso mesmo, tenho uma relação umbilical com aquela terra. Eu acho que esta relação do poeta com a sua “pátria umbilical” deve ser uma relação cultivada permanentemente.

Definitivamente, o cordão umbilical que une o poeta com a terra jamais foi rompido…

Claro que não! Existe também esse cordão com a minha mátria maior, o país, a terra e os homens de Moçambique. A partir do momento que existe um corte, acontece o desligamento, aquilo a que chamamos de “desenraizamento”. E é perigoso que o sujeito poético não tenha os pés assentes na sua terra.

Conhece algum poeta moçambicano que se desenraizou de sua terra/pátria?

(Risos)… Não quero falar disso.

Existem? Terão existido? Não falemos de nomes.

É complicado isso. Mas o desenraizamento não é algo voluntário, é pela força das circunstâncias, talvez… Mas um poeta tem que ter uma pátria, e tem de levá-la sempre consigo, ainda que esteja no exílio. Uma pátria não se escolhe, ela nos habita por dentro.

Há um diálogo que se estabelece entre os seus livros, poemas e versos, como se fossem costurados por fios de missangas. Por exemplo, em “Espelho dos dias” diz: “O mal da poesia é de existir em todo o sítio menos em parte nenhuma” (1986). No “Coração da noite” (2007), 21 anos depois, diria: “A poesia leva-me a toda parte, menos a parte nenhuma”. De que se trata, afinal?

Talvez esteja aí, digamos assim, a essência da minha poesia. A poesia é isso mesmo, é uma dor recorrente. Acho que não existe melhor definição da poesia que essa. Pode parecer uma definição contraditória, ou pode parecer uma repetição, mas no sentido de sublinhar o que eventualmente já defini noutros textos, noutras ocasiões, noutros contextos. Há certas metáforas e certas imagens que já se transformaram em meu instrumento de trabalho.

Há todo um exercício de recuperação, de memória poética, de jogos…

Creio que seja justamente isso que singulariza ou caracteriza um poeta. Se fores a ler o livro que vai sair agora, não identificado o autor, facilmente o identificarias, seria conclusivo.

É interessante, essa recuperação do primeiro livro, pois alguns autores tendem a “divorciarem-se” dos seus. Não se arrepende, neste caso, do primeiro livro…

Não, nem tão pouco. Cada livro é um livro. Neste caso é um livro que me marcou bastante, primeiro, como livro primeiro, segundo, como livro que teve uma boa recensão crítica. Foi um bom começo, foi um dos livros mais falados na época…

O AA aparece, geralmente, como um poeta minimalista, de poesia enxuta. No “As Falas do Poeta”, porém, experimenta poemas mais longos. Era o início de uma nova fase?

Podemos dizer que sim. Tanto é que tenho outros, da mesma linha, no prelo. Mas, considero-me, essencialmente, um poeta de verso curto, de axiomas, de haikais, convenhamos, um poeta proverbial. Aliás tenho um outro livro, já pronto, que leva justamente o nome de “Axiomas”… E são axiomas mesmo! Está muito ligado aos provérbios, aos aforismos. Sempre gostei de provérbios, que é a nossa filosofia, nosso pensamento… Considero-me por isso um poeta de verso curto. Se calhar está, também, relacionado com a minha própria natureza, pois sou um indivíduo de parcas palavras…

Timidez verbal…

Sim, exactamente. Gosto de dizer tudo em 2 ou 3 palavras… (Risos).

Mas o “As Falas do Poeta” tem poemas mais arrojados, de páginas inteiras…

Sim, os livros “A reinvenção do ser e a dor da pedra” e “Muery” são, na verdade, poemas corridos, que contam uma estória.

Em entrevista, o poeta Sangare Okapi afirmou, passo a citar, “não sou um poeta louco como o Alba, White, Armando Artur”. É um poeta louco?

(Risos…) Não sei. Aliás, diz-se que todo o criador é louco. Mas se for na perspectiva de uma entrega total à poesia, então devo ser louco sim. Sabes, não se faz poesia em “part-time”. Ou seja, não se produz literatura nas horas vagas. Senão não será literatura a sério. Repare que eu me entreguei, a tempo inteiro, por assim dizer… desde os tempos da Charrua. Na altura eu era estudante do Instituto Industrial; estava num curso que para mim era incompatível com aquilo que eu realmente queria ser. Eu nunca quis ser outra coisa senão ser poeta. Nessa perspectiva, talvez seja louco mesmo… (Risos).

Abrindo aqui parênteses, um outro poeta da Charrua passou também pelo Instituto Industrial, o White.

Sim, nós nos conhecemos lá. Um dos meus melhores amigos de sempre, o White. Para além de colega de escola, era amigo e confrade de letras… Éramos cúmplices… abandonámos os cursos no instituto para nos dedicarmos noite e dia à literatura. Vivemos juntos durante muitos anos. Ele foi o primeiro, em relação a mim, a ter casa e convidou-me para morar com eles (pois já estava casado com a Olga Pires, e o Sandro, filho de ambos, já havia nascido). Aliás, éramos muito mais do que amigos, somos família, incluindo a Olga.

Falando do Eduardo White, como recebeu a notícia do seu desaparecimento físico?

Ele era meu irmão. Penso que já disse tudo… Deixemos disso, e falemos doutras coisas…

Cumplicidade… Ocorre-me que a vossa poesia é muito diferente. Vocês partilhavam textos? Como é que conciliavam as diferenças?

Olha que nós partilhávamos até livros, embora fôssemos de escolas literárias diferentes. Cada um de nós teve a sua própria formação literária, cada um com os seus tutores. Em Lisboa, cada um de nós convivia com os seus tutores. Percebemos isso muito cedo, mas nem com isso deixávamos de partilhar leituras. A nossa formação intensificou-se mais nos finais dos anos oitenta e princípios da década 90. Na verdade, creio que isso é o que nos enriqueceu, pois éramos de leituras abertas. Sempre tivemos um profundo respeito pelas opções do outro. O mais importante era o resultado, o poema, se era bem conseguido ou não. Primávamos somente pela qualidade.

Disse, a Michel Laban, que era ateu. Continua ateu?

Talvez sim, talvez não. Mas, prefiro dizer que sou um agnóstico. Os meus escritos espelham muito este agnosticismo.

A religiosidade nunca lhe interessou?

Não é uma questão de interessar ou não. Se é que existem mesmo, vejo o mundo repleto de vários deuses. E cada um de nós escolhe o seu deus, e ponto final.

Foi uma opção, conforme foi crescendo? Não teve uma educação religiosa?

Sempre questionei tudo desde miúdo. Como é comum na Zambézia, a minha mãe era protestante, 100% religiosa. Todos iam à igreja, mas eu fui sempre um “à parte”. Em miúdo fui sempre introvertido. Acho mesmo que a problemática existencial em mim vem desde criança. Acho que a religiosidade é um assunto puramente individual.

E continua a não “gostar muito” da poesia de Craveirinha…

Não sei se, em algum momento, cheguei a dizer que não gostava…. Eu acho que somos de escolas completamente diferentes. Não se trata de gostar ou não. Trata-se sim de me reconhecer, de me reencontrar nela, o que não é o caso. Mas cuidado, uma coisa não anula a outra. Reconheço-o sim como um dos maiores de todos os tempos em Moçambique, senão mesmo o maior. O Craveirinha era de outro universo, e na poesia há vários universos diferentes.

Para fechar, há uma questão que me morde e não a fiz porque não queria ser indelicado. Mas, e Milena? Quem é a Milena que habita os seus livros?

(Suspiro fundo, sorriso leve…) O livro “Muery” é uma espécie de elegia lírica, uma estória dedicada à Milena. Milena é a minha deusa, nascida de mim próprio, minha filha que perdeu a vida aos 5 anos de idade. Tínhamos uma relação muito acima, aliás, tenho essa relação profunda com as minhas filhas. Sei que o Artur não vai ficar com ciúmes por eu falar assim das irmãs.

Publicado originalmente no semanário Ponto por Ponto, edição de 17 de Março sob o título “É muito mais difícil escrever poesia do que um conto ou uma estória qualquer”.

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