Centro Cultural de Matalana: Um oásis “esquecido”?

Escrito por Guilherme Mussane

Toda a definição restringe, e toda a restrição diminui, encurta, empobrece. Precisamente por isso, seria exercício de ociosidade começar esta nota de reapresentação de um santuário cultural com uma tentativa de definir o que é o Centro Cultural de Matalana.
No sertão de Marracuene, a cerca de 30 Kms da Cidade de Maputo, encontramos um autêntico oásis cultural criado por Malangatana Valente Ngunha, um dos mais ecléticos artistas moçambicanos, que nasceu em Matalana no longínquo ano de 1936.
Criador de se lhe tirar o chapéu, foi um artista polivalente nas artes, praticando para além da pintura, o desenho, a escultura, tapeçaria, a dança e o teatro.
Teve uma carreira internacional de referencia obrigatória, tendo exposto em vários quadrantes do globo. Entre as suas emblemáticas obras espalhadas pelo mundo, destacamos os murais pintados na Suazilândia, África do Sul, Chile, Estados Unidos, Inglaterra, Suécia e nas principais cidades da terra que serviu de rampa para a sua chegada à terra, Moçambique, com especial destaque para as Cidade de Maputo e Beira.
Na escultura merece destaque especial a obra “ A Casa Sagrada dos Mabjaia, de metal e cimento, com cerca de 20 metros de altura, instalada na Mabor de Moçambique, uma fábrica de pneus.
Em 1996 publicou o livro Vinte e Quatro Poemas. Foi um verdadeiro divulgador do rico cancioneiro tradicional ronga e exímio actor e bailarino.
A obra de Malangatana integra coleções de diversos museus e galerias públicas. Está espalhada em várias colecções privadas, em muitos países, nos diversos continentes.
Na obra de Malangatana predomina a simbiose entre os seres mitológicos e a religião: “(…) já nos anos 60, comecei a ver também pinturas de Picasso… do Bosch, de quem tive uma grande influência, quando vim a simbiosar aspectos mitológicos com a religião… convencional, digamos”. Esta citação está contida no livro “Vozes de Moçambique-literatura e nacionalidade” de Patrick Chabal.
Projecto de acção cultural e social em Matalana
Matalana exibe uma beleza natural invejável com uma paisagem caracterizada pelo verde de diferentes ondas tonais, mas não é isto que levou o seu nome para o mapa cultural à escala planetária.
Neste oásis cultural intricado em Marracuene nasceram nomes que deram uma dimensão mundial a esta localidade. Neste vasto santuário artístico além de Malangatana, nasceram, o dramaturgo Lindo Lhongo, os artistas plásticos Fernando Machiana e Mankeu Mahumana, a Sabina Ngomane, mais conhecida por Vovó Ndlozi, que catapultaram a localidade a uma dimensão mundial.
Foi para espalhar a beleza e simbologia artísticas emanadas pelas suas obras e a dos seus amigos de infância e familiares, que Malangatana passou boa parte da sua vida dedicando-se à criação de um centro cultural que pudesse tornar perene à vida e a cultura da sua terra natal.
O sonho do artista era erguer um espaço que servisse de base para a reprodução social da cultura ronga tendo como epicentro Matalana. E foi assim que juntando diversas sinergias de amigos e instituições criou o Centro Cultural de Matalana.
O centro espraia-se por uma área de 12 hectares, composto por vários edifícios que nos trazem à ribalta da memória, o traço arquitectónico de Miranda Guedes, amigo e mentor do artista, combinado com portas e janelas escultóricas talhadas pelas mãos de Malangatana. Um atelier, um dormitório com cerca de 30 quartos, cozinha, refeitório, sanitários e balneários.
Este local e outros, são espaços criados para uma utilização polivalente em actividades de capacitação profissional dos jovens, em áreas como artesanato, alfaiataria, escultura e outras, preservando à história e herança culturais, com foco para o desenvolvimento local.
O mítico Mudedelene
Quem visita o Centro Cultural de Matalana é recebido, a chegada, por uma imponente obra mítica denominada Mudedelene. “Na nossa tradição a cultura é transmitida, oralmente, de geração em geração. Quando éramos crianças, à noite ficávamos a volta da fogueira e ouvíamos os nkaringana wua nkaringana, que eram fábulas contadas pelos nossos avós. Entre as estórias mais famosas está a de um monstro alto, com pernas compridas, que ficava nos entroncamentos dos caminhos a espera daqueles meninos e meninas, que a noite fugiam das casas para ir assistir a Marrabenta no Mussendeni”, contou-nos o artista plástico Mankeu Mahumana, falecido, tendo acrescentado que “ os mais velhos diziam que quem fugisse iria se ver com o aperto do Mudedelene. Dizia-se que era um monstro alto que fumava, mas ninguém, da nossa geração, viu a cabeça de Mudedelene”.
Na contramão de afugentar o medo que o ser humano sente face ao desconhecido, que é o mais badalado propósito dos mitos, esta estória cria o “medo” para manter a ordem social. Os velhos de Matalane elaboravam histórias fantasiosas aceites como verdadeiras, sem contestação. É desta maneira que davam significado ao seu mundo. Aqui, o mito é uma forma de dar significado ao mundo. É a arte de criação de histórias que tranquilizam, dão exemplo e guiam o dia-a-dia das pessoas. Inacabado, o Mudedelene da imaginação do Malangatana, será completado ao longo de gerações de matalanenses.
Fundação Malangatana
Neste local, encontra-se, também, um lindo edifício que é uma das emblemáticas obras do Arquitecto José Forjaz, que foi projectado para ser sede da Fundação com o nome do seu patrono.
O que concentra o olhar neste espaço é a escultura totémica que se encontra a entrada. A família de Malangatana é conhecida por Waka Nguenha, ou seja, descendentes dos Nguenhas, que significa crocodilo na língua de Camões. As discussões antropológicas sobre o totemismo abarcam dois problemas distintos: por um lado, o da maneira pela qual os homens representam as suas relações com a natureza e, por outro, o problema da denominação dos grupos sociais. A denominação dos grupos sociais com ajuda de termos animais ou vegetais concerne exclusivamente ao primeiro problema. A escultura que aqui referimos representa, simbolicamente, a dimensão social, psicológica e ritual da família Nguenha.
Até o desaparecimento físico do artista, a fundação tinha vários projectos para a formação de crianças e jovens nos vários domínios da educação e cultura. Havia, também, projectos ligados ao desenvolvimento artístico da região.
A casa ,o túmulo e o mussendene
Todas as componentes do Centro Cultural de Matalana são formas de arte, por excelência. A casa antiga, composta por duas palhotas tradicionais, ganhou nova forma arquitectónica inventada pelo dono. A sala, os quartos, a cozinha e casas de banho encontram-se interligados por ampliações arredondadas que nos fazem lembrar as curvas do famoso arquitecto brasileiro, Óscar Niemeyer.
Ao lado está a imponente residência do artista, resultado da lavra do Arquitecto Forjaz concebida para a família e para os visitantes. É um edifício que evidencia as marcas do artista plástico e do arquitecto com um palco, uma sala ampla, quartos, casas de banho, jardim, paredes que alojam diferentes obras do artista entre pinturas e esculturas e vários vasos desenhados e construídos, a pormenor, pela rica imaginação do Malangatana.
No fundo do terreno reservado ao espaço familiar encontramos o túmulo do artista. É uma obra à dimensão do dono. Com uma base de mármore que é completada, na parte de cima, por uma obra de escultura de nguenha, crocodilo, o totem da família de Malangatana. Deste local pode-se observar a maior parte das diversas componentes do centro. Simbolicamente, representa a omnipresença do artista neste santuário cultural.

Entre as maiores atracções do cento, temos o anfiteatro ao ar livre, com bancadas, onde se realiza, anualmente, o Festival de Marrabenta.
Os sonhos do artista incluíam, entre outras realizações, a formação profissional dos residentes, a projecção para o futuro através da instrução das crianças e jovens, a articulação com as diversas instituições ligadas a arte e cultura, dentro e fora do País. A lenta e quase inexistente acção, para a materialização destes sonhos, que hoje nos parecem miragem, é que faz deste local parecer um oásis esquecido.

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top