Crónica do dia em que conheci Gilberto Muzilene

Crónica do dia em que conheci Gilberto Muzilene
Na manhã da Quinta-feira, sete de Abril, estive no Shopping Baía Mall, a cumprir outras agendas. Cheguei por volta das 10 e o sol estava tímido, enquanto ventos fortes arrastavam as areias da Praia da Costa do Sol, fazendo-as bailar no asfalto e nas bermas da avenida Marginal, ora tomadas por mulheres trajadas de capulana, a condizer com a ocasião.
Havia mulheres e capulanas em todo o lado. Na fachada do supermercado, crescia uma pequena bicha colorida por lenços, panos e sorrisos femininos, que serpenteava até à entrada, onde se encontravam um guarda com uma pistola de medição de temperatura na mão e uma botija de álcool desinfetante fixa a uma parede de vidro, que separa a porta de entrada da de saída, a fazerem cumprir o ritual anti Covid 19.
Dentro do edifício, a agitação era enorme. Mais capulanas, mais cores e mais sorrisos. Enfim, mais vida. Era difícil e desnecessário distinguir raças, proveniências e rostos naquele ambiente festivo. Caminhei pelos corredores, tomados por mulheres, a observar um pouco de tudo, até que os meus olhos se esbarraram num conjunto de quadros pendurados numa grelha de madeira, montada no meio de toda aquela agitação.
Olhei para as obras com atenção. Eram rostos. Muitos rostos. Aproximei-me, atraído pelas cores fortes e o traço detalhado que me revelavam a mestria de quem pincelou as obras que estavam diante de mim e de todos os outros transeuntes. Fui olhando e reconhecendo algumas das personagens e pessoas reais estampadas nas telas, enquanto procurava pelo responsável por tamanha proeza.
Quando eu já ia apreciar o outro lado da parede de quadros, mais um encontro. Lá estava ele. Um homem de altura média, os cabelos enrolados em afro, cobertos por uma cartola preta, inclinada com estilo para o olho esquerdo. Estava sentado sobre a base de um pilão banhado de branco, colocado em posição invertida. O tronco erecto, coberto por uma camiseta branca, um tabuleiro de tintas multicolores na mão esquerda, pincel no membro superior direito e os olhos cravados na tela, Muzilene parecia estar num universo paralelo, onde só existem ele, as tintas e as molduras.
Fui lá ter. Comecei por apenas observar cada detalhe, seguindo os fiapos de tinta entornados pelo pincel só com o olhar, maravilhado pelo que via, pois nunca antes eu tinha acompanhado in loco, o processo de produção de uma obra arte, qualquer que fosse a disciplina.
Decidi puxar conversa, mas sem me apresentar. Reconheci o rosto de quem Muzilene pintava e, a partir daí, nasceu o diálogo.

Pintar Rostos para valorizar as pessoas

Gilberto Muzilene é seu nome oficial, mas é mais conhecido simplesmente como Muzilene. É um homem de paixões, que encontra nas cores, telas e pinceis veículos para exteriorizar sentimentos. Desabrochou nas ruas da Polana Caniço A, onde nasceu, cresceu e deu os primeiros passos como artista durante a década de 80, a brincar nas areias escuras, por vezes lamacentas, e também, em poças de água que enfeitam as vias do quarteirão 52, bem como outros pontos do seu bairro, sempre que chove.
Mais tarde, já no ensino primário, chamou a atenção de um professor – pela sua boa prestação na disciplina de Educação Estética e expressividade dos seus desenhos e pinturas – que o aconselhou a seguir o trilho da Escola de Artes Visuais. Os primeiros quadros de Muzilene foram pintados à tinta de parede, na impossibilidade de ter o acrílico, por falta de dinheiro para o efeito. ‘‘Acredite, aquilo dava um brilho que tirava toda a qualidade’’, descreve o artista e sustenta que ‘‘como eu fazia de coração, as pessoas gostavam muito’’.
Encarrou-me uma única vez, de raspão, enquanto respondia as minhas perguntas. De seguida, apresentei-me e, logo, lancei o convite para que Muzilene participasse no ‘‘Artista do Bairro’’, espaço dedicado às artes e artistas ao nível dos bairros, inserido no programa ‘‘Conversas ao Meio Dia’’, que é produzido pela Plataforma Mbenga Artes e Reflexões e passa todas as Sextas-feiras, das 12 às 14 horas, na Rádio Cidade FM (97.9FM).
Muzilene não se fez de rogado. Titular de uma humildade extrema, aceitou o convite e continuamos com o nosso papo. Pelos trabalhos que tem feito no Baía Mall, é possível perceber um Muzilene retratista, pois lá faz essencialmente rostos. Entretanto, destaca que não só de rostos se faz Muzilene, pois também se aventura noutros esboços. ‘‘Tenho muitas técnicas, só para frisar. Além do rosto, faço paisagens urbanas, cenas do quotidiano, onde podes ver o dia-a-dia das pessoas e do guetto onde eu vivo’’, esclarece, sem desviar o olhar da obra que ia sendo elaborada.
O que acontece, explica, é que o Baía Mall é um bom espaço para se ter mais visibilidade, sobretudo para quem faz arte. ‘‘Estando aqui vi a necessidade de me especializar em retratos, para trazer os rostos como uma forma de valorizar as pessoas’’, conta, a acrescentar que é através dos retratos consegue fazer com que as pessoas se identifiquem e, assim, partilhem os seus trabalhos.
Muzilene começou a pintar ainda miúdo, entre os seis e sete anos de idade. É tomado por uma enorme nostalgia ao recordar dos seus primeiros trabalhos, porque acredita que a ingenuidade e espontaneidade com que pintava, quando era mais jovem, faziam de si um artista completo.
‘‘Eu fazia coisas incríveis, PAH!’’, lembra, enquanto esboça um sorriso aos soluços, ao mesmo tempo em que interrompe as pinceladas para rebobinar a memória com maior precisão. ‘‘Admiro que, agora, parece-me que estou um pouco relaxado, mas quando era miúdo fazia coisas terríveis que até agora gostaria de voltar a ter aquela memória de miúdo, para pintar aquelas cenas actualmente’’, descreve, a justificar que ‘‘acho que a memória estava mais fresca, porque fazia coisas que nem eu às vezes imaginava que podia fazer’’.
Hoje em dia, Muzilene ainda se considera um miúdo, por acreditar que tenha mais por aprender do que ensinar. Entretanto, admite que as capacidades e motivações que outrora tivera para produzir os seus trabalhos se foram com o tempo, pois ‘‘agora já estamos num tempo digital, onde temos feito coisas que muitas vezes não são por inspiração natural. Temos trabalhado com tecnologia, pois a arte também já está virada à tecnologia’’.

A arte não deve ser escondida

No Baía Mall, Muzilene pinta diante das vistas de todos os que caminham pelos corredores daquele estabelecimento comercial. As suas obras, muitas vezes, atraem olhares curiosos de pessoas que despendem alguns minutos do seu tempo para assistir ao processo de concepção e, outras, até pagam pelos retratos.
É neste tipo de ambientes em que Muzilene gosta de produzir. Um dos saltos mais altos no seu percurso foi a saída do Ateliê para as ruas. Aliás, este artista até nasceu nas ruas e é lá, envolto pelo calor humano, onde se sente aconchegado.
“Percebi que estava muito fechado, quando pintava em casa e no bairro. Eu precisava de pintar para as pessoas verem e apreciarem o meu trabalho”, elucida Muzilene, a explicar que é mais valia pintar em locais abertos ‘‘para as pessoas perceberem que a arte deve ser consumida e não é algo a se esconder.’’
Muitos artistas, continua Muzilene, pintam escondidos. “Não critico, cada um tem a sua forma de ver as coisas, mas, no meu caso, a interação que tenho tido com as pessoas que passam e me veem pintar é uma experiência única’’
Ser visto ao vivo durante o fabrico de suas obras é um hábito que Muzilene já vai alimentando há algum tempo, pois constata que o contacto directo com o público, a este nível, rende-lhe um grande impacto positivo. ‘‘Há quem não consegue pintar onde houver movimento de pessoas, outros até me perguntam como consigo pintar nestas condições (pessoas a andarem, outras a fazerem questões…), eu digo que é um desafio para mim, e que não vejo problema algum. Sempre pintei rodeado de crianças.”
Muzilene admite que não é tarefa fácil produzir diante da atenção do público, mas lança este estímulo a outros fazedores. “Acho que é bom e gostaria de levar essa forma de fazer também para zonas onde vivem pessoas com menos posses, para verem as coisas acontecer”.
Apesar de enormes desafios e dificuldades que vão desde a aquisição dos materiais, até a venda das obras, Muzilene estrapola os limites dos espaços fechados e sai para algumas das principais avenidas e paragens da Cidade de Maputo, em 1999, para vender os seus trabalhos. Num dia qualquer, a cumprir as suas jornadas diárias, um homem chegou ao seu pequeno ofício, para apreciar as suas obras. Muzilene, como sempre, concentrado a pintar mais um quadro, não se deu conta a priori de quem se tratava. Na ocasião, Muzilene até levantou-se para mostrar e dar detalhes dos seus trabalhos, como quem recebe um novo apreciador, quando se deu conta de que estava diante de nada mais e nada menos que Naguib, artista plástico que é uma das suas maiores fontes de inspiraçãos. Muzilene tratou de guardar na memória as palavras de Naguib, artista a quem considera mestre, ao ver os seus quadros.
‘‘Ele disse me que eu pintava muito bem e que, por isso, precisava de sair das ruas e entrar nas galerias, foi quando fui conhecer o Núcleo de Arte, em 2000’’, narra.
No Núcleo D’Arte expandiu os seus horizontes, aperfeiçoou as técnicas e continuou a produzir. Conheceu artistas com quem criou amizades e passava tardes a fio, em conversas e oficinas de pintura em seus ateliês, como Ídasse Tembe, Victor Sousa (professor de arte), Samuel Djive (a residir no mesmo bairro – Polana Caniço A), sem contar, claro, com a influência dos trabalhos do grande mestre Malangatana.
Membro efectivo do “Núcleo D’Arte” desde 2006, também teve os primeiros contactos com críticos de arte e fez as suas primeiras exposições, caso para dizer que Muzilene se afirmou como artista. A sua primeira aparição foi em 2012, numa colaboração com João Timane, intitulada “Despertando Olhares”, que esteve alojada na Midiateca do BCI, na baixa da cidade de Maputo.


Daí, não mais arredou. 3 anos depois, nasceu a sua primeira individual. “Hlhavutelo” – termo bantu que, em português, significa revelação – é o trabalho com que Muzilene colocou os pés firmes no chão e decidiu caminhar com mais vigor. Na mostra, que também que esteve aberta na Midiateca do BCI, o artista revela cenários do quotidiano, refletindo sobre as lutas diárias pela sobrevivência das gentes do subúrbio, num mundo que considera “egocêntrico.”
Pegou o gosto e a prática por individuais e, em 2017, inaugura mais uma exposição. “Massungulo” – princípio, início ou gênese – é, igualmente, um nome de origem Bantu. Na altura, Muzilene tinha se aplicado em aprender novas técnicas, apresentando-se ao público como um novo artista. Uma espécie de renascimento, onde o artista trouxe uma nova abordagem. Um novo Muzilene, munido de novas ferramentas e visões.
Em 2019, volta a expôr. Desta feita pela chancela da Escola Portuguesa, que o desafiou a criar um conceito em torno da preservação do meio ambiente. “Nós e o futuro sustentável” foi o nome escolhido para a mostra com que Muzilene pretendia lançar o apelo para boas práticas ambientais, como o plantio de árvores, depósito, gestão e reciclagem de resíduos sólidos, entre outros, para a manutenção da vida no planeta Terra.
Tem, ainda, algumas participações, como “Um Brinde à Amizade” e, mais recente, “Os Heróis do Covid”, no Baía Mall, em 2019, que lhe possibilitou o espaço onde hoje faz os seus trabalhos.

A cor sempre me chama

Um dos aspectos que mais chamam a atenção nas telas de Muzilene é a presença e, por vezes, abundância de cores fortes. Aliás, no seu pequeno tabuleiro, o artista tem amontoado um número considerável de frascos contendo tintas de várias cores. Num compartimento que corresponde a mais de 50% daquele recipiente, o artista mistura de tintas, resultando em mais cores.
“Eu gosto muito de cores”, justificou, a seguir, atenciosamente, os contornos das bochechas da mulher que estava na tela.
As mulheres eram as donas do dia, portanto, muitas foram as que interromperam a nossa conversa para questionar sobre as obras, os requisitos necessários para ter o seu rosto na tela, entre outros. Em meio ao azafamado trabalho de Muzilene, a minha agenda já apertava. Já uma das donas do dia me ligava, para recordar que eu não estava no Baía Mall a passeio, muito menos a trabalho, mas antes a cumprir ordens.
Ainda assim, o bate-papo com Muzilene não cessou. É um artista que gosta de se abrir e, neste sentido, contou que a paixão pelas cores é antiga. Mesmo nos tempos em que usava tintas de parede, Muzilene já se preocupava com esta questão “tento fugir das cores, mas a cor sempre me chama”, esclarece.
Gosto da cor, prossegue, de rabisco e desenhos, também. “Desenho muito e tento fazer essa combinação de desenho e cor”, finalizou.
Esta matéria, integrada na rubrica Artista do Bairro, que compõe o programa Diversidade, produzido pela plataforma Mbenga Artes e Reflexões, conta com o apoio DIVERSIDADE, um instrumento de financiamento do PROCULTURA PALOP-TL – Promoção do Emprego nas Atividades Geradoras de Rendimento no Setor Cultural nos PALOP e Timor-Leste, financiado pela União Europeia, cofinanciado e gerido pelo Camões, I.P., em parceria com a rede de Institutos Culturais Europeus (EUNIC).

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