Campo de areia de Léo Cote: Entre o carácter fugidio e jogo da redundância*

Escrito por Américo Pacule

Um dos problemas com quais nos deparamos, quando nos embrenhamos na discussão em torno de Campo de Areia de Léo Cote, foi naturalmente o título, que, sob muitos aspectos, transmite, à primeira vista, uma flagrante redundância, algo óbvio e absurdo. Porque, em princípio, como se caracterizaria um campo? Ou seja, qual seria a primeira condição necessária e indispensável de um campo, a partir da qual todas as outras seriam acidentais, prescindíveis? Contudo, a redundância ganha um outro sentido, quando nos compenetramos mais profundamente na análise da problemática que o título suscita, as possíveis sugestões que ele nos fornece, bem como no conteúdo que ele representa, à luz daquelas que tem sido as grandes discussões polares, eternas e estruturantes em torno da relação entre literatura e sociedade; ou, se quisermos falar em termos gerais, quando nos envolvemos na análise da correlação entre a obra de arte enquanto da dimensão transcendental, desligada, só para nos expressarmos em termos kantianos, do concurso da experiência, das preocupações dos homens, ao mesmo tempo que precisa de se traduzir de uma forma que seja comunicável aos homens, precisamente porque é por ironia um produto feito para servir a eles, por um lado, e os materiais que ela decompõe, por outro. Tal sentido é o da metáfora e o do questionamento da condição da obra-de-arte-literária, nomeadamente, o seu carácter ambíguo, na medida em que se insere numa dimensão a que chamar-se-ia ideal (Platão), ao mesmo tempo que recorre ao real-empírico (Aristóteles), para configurar, representar ou tornar possível essa mesma dimensão ideal, o que a faz situar-se no domínio transcendental (Kant).
Para oferecermos um quadro panorâmico desta problemática e mostrarmos como a poesia de Léo Cote se enquadra, parece-nos importante rastrear um pouco o percurso da concepção da produção literária, partindo das primeiras tentativas que se encontram nos primeiros dois fundadores do discurso teórico da Literatura, Platão e Aristóteles. A conclusão a que este rastreamento nos leva é que o entendimento que a teoria tem da Literatura e da arte em geral, na sua relação com o empírico, foi sempre extremado, dando-se a impressão de que se trata de um produto de uma natureza e essência duplas, e que pode ser tomado como híbrido, cujas partes se mantém estranhas uma da outra e, com efeito, irreconciliáveis, e mesmo quando se lhes aceita algum tipo de relação, esta se explica pela necessidade de a arte justificar a sua função instrumental, a de se um produto útil à vida.
Ao denunciar o seu carácter mimético e ao submetê-la ao mesmo princípio que remetia todas as coisas, nomeadamente que eram cópias imperfeitas das ideias, e, por essa razão, ao descrevê-la em termos depreciativos e inautênticos, Platão procurava salientar entendimento da poesia. A ideia que nos parece subjacente nesta concepção é de que a essência da poesia, se esta aspirasse alcançar o estatuto das disciplinas racionais, e conquistar dignidade e autonomia, não deveria ser procurada na sua dimensão mimética, ou empírica, mas antes na sua dimensão ideal. O mesmo podia, de certeza, o filósofo, dizer relativamente aos processos da sua produção e aos sujeitos que a produzem, neste caso os poetas. Por seu turno, Aristóteles, ao conceber a poesia como imitação, e ao aceitar que esta era uma característica intrínseca à natureza humana e que deveria concorrer para a moralização da sociedade, legitimou, de uma forma ou de outra, não apenas a interacção quase que vital e necessária entre a arte e a realidade empírica, isto é, entre arte e os materiais que ela necessita para se tornar possível, mas também e, sobretudo, a primazia e a preponderância da sua dimensão empírica face à dimensão ideal pese embora ele mesmo se reposicione face a essa mesma ideia quando assume a poesia como sendo mais filosófica do que a História.
Como se pode depreender, trata-se em ambos os casos de visões polares extremadas, que nos podem fazer perder de vista a obra de arte enquanto uma dualidade em equilíbrio entre o empírico e o ideal, visões estas que, aliás, continuariam ao longo da história da reflexão sobre a arte em geral e sobre a literatura em particular a dividir opiniões entre, por um lado, a necessidade de cultivar uma arte desligada dos compromissos sociais, éticos, políticos, ideológicos e uma arte que estivesse ao serviço destes domínios, isto é, uma arte ligada à sociedade por relações instrumentais. O que nunca se admitiu é que tanto a arte quanto a sociedade, socorrem-se uma da outra, não para resolver problemas alheios, mas para resolver os seus próprios problemas, por uma necessidade vital. Mais do que indicar estas polaridades ou estas relações instrumentais, apontar-se-iam as relações de simbiose, com benefícios mútuos, pese embora não simultâneos. Há neste a encenação de uma relação de simbiose entre a imitação e a coisa imitada. E é aqui onde nos permitimos falar de uma dimensão transcendental da obra de arte, neste caso, de Campo de Areia de Léo Cote. Será muito provavelmente por causa desta relação de atracão e repulsão entre a arte e a sociedade que a prestigiada estudiosa brasileira, Vanessa Riambau Pinheiro, descreve a poesia de Léo Cote, no prefácio, como encerrando um carácter fugidio. E o carácter fugidio da poesia só se torna possível através do jogo da redundância a partir do qual o poeta constrói o seu edifício poético, como se ignorasse os materiais concretos de que ele se constrói, ocupando-se tão-somente da forma genérica da sua existência, das suas formas conceptuais ideais e empíricas.
Nestes aspectos, a obra suscita-nos algumas questões tais como: Qual é a essência, se é que podemos falar de essência, da obra de arte literária? Como se operacionaliza o seu jogo de representação? Qual a função ou para que serve a obra de arte literária? Qual o estatuto da obra de arte literária face às outras dimensões do saber? Pode, a arte, enquanto do domínio do transcendente, reivindicar uma plena autonomia face aos dois domínios a partir dos quais ela foi composta? Podemos mencionar uma infinidade de questões e de propostas de respostas, mas todas elas divididas entre uma concepção idealista da obra de arte literária e uma concepção realista ou materialista, sugeridas na oposição entre o princípio de arte pela arte defendido pelos simbolistas franceses, Baudelaire, Guy de Maupassant, Mallaermé, Rimbaud e Flaubert e o princípio de arte pela ética, pela moral, pela ideologia, em suma uma arte com fins utilitários.
E, aqui, a obra de Léo Cote responde-nos positivamente, que sim, é possível encontrar um meio-termo entre uma concepção idealista da arte e uma concepção materialista, que é possível colocar a arte ao serviço dos homens sem reduzi-la ao mundo da experiência dos homens. E como isso é possível? Através do jogo da redundância, ou seja, a arte da construção da obra de arte literária, ignorando os materiais de que ela se compõe e atendo-se tão-somente nas suas categorias de existência, na sua enunciação. Com o efeito, o poeta constrói o seu edifício poético, não com palavras objectivas que facilmente nos reenviem para o mundo específico dos homens, mas com palavras sensíveis, capazes de se adaptarem a qualquer realidade. Neste aspecto a poesia de Léo Cote não é um caso isolado. Há toda uma plêiade de autores moçambicanos, como João Paulo Borges Coelho, Álvaro Taruma, Macvildo Bonde e outros, cuja estética literária ocorre não ao nível do conteúdo, mas ao nível da enunciação, do discurso.
Encontramo-nos, neste livro, perante o jogo da redundância, ou o jogo de mútua representação entre a ideia e a matéria. Aquilo a que em terminologia literária se chama metáfora. A metáfora, enquanto fundada no princípio de analogia, é um jogo de redundância em que um primeiro elemento (forma conceptual ideal), ao se confrontar com o segundo elemento (forma conceptual empírica) resulta num terceiro elemento que não está lá pensado. A redundância aqui evocada, enquanto tal, não é de natureza empírica e externa ao processo de gestação e produção da obra, mas de natureza interna, da experiência orgânico-fisiológica da obra no decurso da sua concepção e gestação, pois se fosse de natureza empírica, a obra, ao ser publicada, não acrescentaria algo novo, para além do que já se sabe que existe dentro de um sistema literário, permitir-nos-ia ver apenas as relações de intertextualidade que mantem com outros discursos. Enquanto metáfora não pode ser a de uma analogia estável e positiva, na medida em que no mesmo momento em que se estabelece a identidade e o parentesco entre o elemento ideal e o empírico através da sua fusão transcendental, vai posto o reconhecimento da sua irredutível diferença e liberdade de um em relação ao outro. Leonel Ribeiro dos Santos, 1994: 96. Estamos, sob todos os efeitos, num caso em que o espírito, no acto de produzir a obra, serve-se do concurso do símbolo enquanto função do espírito cuja exequibilidade é tornada possível pela metáfora, permitindo fundir o conceptual inteligível e o conceptual sensível. É por isso que, neste caso de literatura, a correspondência entre o conceito da ideia, (conteúdo) e o conceito da imagem, que é o material, (forma). E a função redundante ou analógica do espírito artístico do sujeito produtor em de Léo Cote, ao unir a ideia e a matéria, opera na lógica do juízo de analogia kantiano. Mas acontece sempre uma desproporção, difícil ou impossível adequação entre o conceptual inteligível e o conceptual empírico, ou porque a imagem é refractáriaa à redução e fixação nos limites de um conceito, o que acontece na ideia estética, (nos mitos, nas analogias), ou porque a ideia da razão, furtando-se a toda a objetivação, suporta contudo a sua representação, desde que esta lhe assegure a irredutibilidade e autonomia, o que só é possível mediante um acto da faculdade de julgar reflexionante estética e da imaginação, ou seja, como símbolo. Leonel Ribeiro dos Santos, 1994: 96.
Neste processo de produção da obra-de-arte-literária, o espírito produtor impede que a ideia se torne ídolo, como quis Platão que esta fosse; mas, ao mesmo tempo impede que a matéria se introduza na ideia da obra de forma meramente grosseira. Tanto uma, quanto outra erigem-se como potenciais dinâmicos, focus imaginárius da obra, princípios de iluminação e polos de atracção.
E em todos estes sentidos, a obra de Léo Cote faz jus tanto ao primeiro quanto ao segundo princípio aristotélico segundo os quais a poesia é imitação e é mais filosófica do que a história no sentido de que ao invés de se ocupar daquilo que existe, lida tão-somente com aquilo que poderia existir. E a imitação pensada enquanto redundância interna da obra, ou como simbiose, não será a de imitação de uma realidade exterior, mas de auto-imitação. Concorre para efeito o emprego de uma linguagem destituída de identidade telúrica, geográfica, cultural, uma linguagem sem linguagem, uma linguagem que nos remete a um universo cosmopolita. O tempo e o espaço na sua dimensão conceitual e fugaz, intangível, desligados da experiência concreta dos homens.
Talvez doa menos uma gaivota no mar/ ou as abelhas toscas a salpicar o chão/ Aprendemos com as andorinhas/ a ver e ouvir passar o tempo/ e é severo o dia/ de não querer mais dele.
Este poema procura encontrar o ponto de equilíbrio entre a dimensão transcendental da arte e a dimensão empírica. Nesse jogo de palavras que resultam nem em cópias fieis da realidade empírica, social, ideológica, nem em cópias fieis do mundo inteligível da poesia, como se pode ler no poema.
O tempo é uma casa grande/ que apodrece devagar/ não há luz que o apague/ nem há metáfora que o redima.
Com efeito o “tempo”, “a casa”, “a luz” aqui evocados não o são na sua dimensão empírica, social, isto é, que se associe ao mundo das experiência dos homens, mas o tempo na sua dimensão transcendental. Aliás, o mesmo se verifica com evocações de espaço, como campo de areia, no título. Aqui também não lidamos com um campo de areia que se associe a um mundo de experiência de uma determinada sociedade ou cultura, mas a um campo abstracto. Trata-se de areia enquanto um mero elemento da natureza, destituída de qualificativos como coloração e funções, não se trata de “areia de incomati”, aquela que utilizamos na área de construção civil, nem são as famosas areias pesadas que se tornaram um recurso estimável, muito menos se trata de “campo de treinos”, “campos de reeducação” ou de qualquer outra coisa.
E o poeta opera duplamente. Primeiro, a semelhança de Deus, enquanto demiurgo platónico no seu acto da criação do mundo. Segundo, enquanto a enteléquia platónica, no seu jogo de tornar o infeliz mundo imperfeito o mais perfeito possível. No primeiro caso a obra será trabalhada ao nível das suas categorias de existência, (os princípios, as suas ideias gerais, os seus conceitos, postulados). No último será operada das tipologias, (os temas, motivos e todo um conjunto de materiais de que o artista se serve para representar a sua ideia. Neste caso, ele dispõe de partida da ideia e dos materiais, e nenhum destes dois elementos, no preciso momento em que se encontram na fábrica ou atelier espiritual do artista, goza de direito e estatuto superior em relação ao outro. Como se pode depreender tanto o demiurgo platónico, quanto a enteléquia aristotélica na sua atuação por intermédio do poeta não concebem as coisas e depois as executam com as suas próprias mãos, mas deixam a tarefa de as construir à responsabilidade de um terceiro, que é o autor transcendental kantiano que se forma algures na trajetória entre o ideal e o sensível.
Referências bibliográficas
Kant, Immanuel (2001). Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Dos Santos, Leonel Ribeiro (1994). Metáforas da Razão ou a economia poética no pensar kantiano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

*Este texto resulta do discurso de apresentação do livro do autor, em 2019, na Fundação Fernando Leite Couto, e foi originalmente publicado no jornal O País. Nesta publicação sofreu algumas reformulações, não porque renunciamos ao nosso pensamento mas por conta dos reajustes que este sofreu.

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