Domingo de Ramos

Na subida ingrime, a talvez uns 300 metros, vejo um dos vagões do comboio de crentes. Vestes brancas no vagão da frente com crianças a segurar a cruz, outras com velas nas mãos, um padre distribui um fumo sagrado, canções gregorianas a entoar Hosanas e Aleluias.

Dobram a esquina da marginal, a descer em direcção à Prancha, investidos de semblantes alegres que espreitam no olhar por cima das máscaras. Outros vagões já contornaram a mafurreira, envergando os seus ramos de coqueiros, eucaliptos, palha, entre outros que depois viram trança que seca nalgumas casas até o ano seguinte.

O bispo, acompanhado por adolescentes acólitos e sacerdotes, caminha na nossa direcção a distribuir bênçãos e promessas de esperança. Seguem com a procissão do Domingo de Ramos. De súbito Lázaro invade o cortejo, mistura-se entre a gente e quebra a coreografia:

Suca.

O leve vento da baía da cidade de Inhambane esvoaça as batinas dos padres e acólitos; as capulanas das mamanas e alguns vestidos de tecidos leves tomam o destino do vento para o gáudio dos jovens.

O espanto não se disfarça nos rostos dos crentes. Tal Deus está aonde? – pergunta Lázaro. Sem resposta dos crentes, talvez na expectativa de uma realidade outra. Vira-se para a esquerda e encara a tia Madalena. Olhos nos olhos.

Eu, a Ofélia, o Edson e o Óscar, aproximamo-nos para ver de perto. Os crentes disputam o centro do círculo que ganhou forma, num silêncio que parece ensaiado.

Você, não te pedi 10 meticais para comprar pão, ontem? Tu me deste?

A tia Madalena mal consegue se proteger do dilúvio de saliva que lhe vai directamente ao rosto quando Lázaro fala. O mau hálito perfura a máscara da quarentona. Seu corpo petrifica-se, desaprende todos os gestos.  Na verdade, ninguém sabe o que fazer.

De sapatilhas Nike, quase esquecidas do branco que foram, calças botsotso rasgadas no joelho direito, camisa com dois bolsos, um para cada lado do peito. Um boné e barba rija. Unhas grandes e sujas. Camisa rasgada na boca do estômago. Na mão direita envelopes de caqui e outros brancos encardidos. Em pé, coloca a mão esquerda em riste, segurando uma caneta Bic, azul.

Só tio Matateu para mobilizar outros homens do núcleo São Francisco. Vão na direcção de Lázaro.

Suca, eu orei, mas nunca vi pão fresco na minha esteira. Com sorte, a vizinha me dá os restos de dias que partilho com meus dois filhos e esposa, tal vinho também nada! Muito muito quando apanho um biscato só dá para comprar uma boina vermelha.

Ele está parado no centro do grupo coral da procissão. A distância que o separa de malta tio Matateu parece um tempo da vida inteira. Está tudo mais lento. Ao chegarem agarram-no, mas Lázaro vocifera:

Vão a merda, seus desgraçados. Esse tal Deus já nos abandonou há muito tempo. Matateu, você acha que ser coveiro é um emprego? Ricardo, não te cansas de ter que pedir emprestado dinheiro ao teu irmão mais novo, todos os meses? E ainda por cima tens uma filha puta. A baba branca da saliva fixa-se na barba.

Forma-se um couro entre os crentes, já em círculo, que dividem gargalhadas e lamentos.

Seu rosto dá-lhe o dobro da idade, não tem mais de 28 anos. Seu corpo vibra, transpira numa enunciação que não poupa em gestos, não obstante a tentativa de imobilizá-lo. Afinal o gajo é forte. O rosto já ensopado. Lázaro praticamente está afogado em si.

Foi nosso colega de catequese para o crisma. Era crente devoto ah, ah, ah, ah. Os copos da virada da noite no Pachiço já tinham despido a nossa vergonha de naquela manhã de domingo, termos gazetado a missa sagrada.

As beatas correm para junto do bispo. O pároco, já próximo de Lázaro solicita um espaço de conversa. Pede-lhe calma, serenidade. Não deixa o diabo te possuir. Não me dirija a palavra, senhor pároco! Irmão, estamos em ambiente de celebração e Deus é Perdão. Deus é abundância. Vinde a luz, irmão. Não me dirija a palavra, Senhor pároco! Junta-te a Cristo e siga a nossa peregrinação, rumo a salvação. Irmão. Já lhe disse, não me dirija a palavra, Senhor pároco!

O sol das 9.30 estanha as testas. Parece que o sal da praia ao lado transbordou para untar os rostos dos crentes que o sentem no paladar, no vacilo do suor. Os jovens juntam-se à malta Tio Matateu para domar o ímpio.

Vou ter de chamar a polícia.

Chama e eu digo aqui, agora, onde o senhor pároco passou a última noite. Aliás, de toda a Quaresma. Embaraçado, o pároco, procura desesperado por um precipício. Evita cruzar o olhar com o bispo e os seus pares. As beatas conhecem o assunto e em uníssono libertam um: aí é? Malta tio Matateu aguardam orientações do pároco que os interrompeu quando agarraram o Lázaro.

Os acólitos correm para proteger as crianças. Lázaro insiste: vão a merda. Eu não comi nada desde há quase uma semana porque a vizinha está a fazer um jejum para Deus! É para quem esse Deus? Meus filhos são menores. É para eu fazer o quê?

Os smartphones registam em vídeos e fotografias. Dou uns passos para trás, preciso mijar. No fundo da Igreja, duas crianças, uma menina e um menino, de talvez seis e três anos, estão de joelhos a rezar, enquanto uma moça reúne as caixas e arruma os paus que fazem a casa onde dormem.

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