Conto de Adriano B. Espíndola Santos

Texto de Adriano B. Espíndola Santos

Manhã

Era manhã, e como todas as manhãs, até o derradeiro instante, Lenir pensava em partir. A leitora pode questionar alguma incoerência, inconformada: mas como? Desde criança ela pensa nisso? Sim, desde quando se entendia por gente. Fato é que só pensava. Os planos jaziam em sua cabeça, em camadas sobrepostas. Não comportava mais tanta imaginação.
Sendo o principal espectador de sua vida murcha, não ousei mais que o necessário. Era nítido que já estava cansada de determinações, de obrigações que não reconhecia como suas.
Ainda assim – sou um tremendo egoísta, confesso –, se dependesse de mim, Lenir não sairia de casa; ficaria constrita aos limites dos meus olhos embaciados de horror. Gostava do seu cheiro morno, do seu olhar torto e da face carente de amor. A carência, aliás, era a característica mais marcante, que, de algum modo, a prendia no lugar – por minha causa, sem falsa modéstia, porque eu era amparado por suas asas mestras, de mãe rapina, que dispersava qualquer projeto devorador.
Os dias simplesmente escorriam pelo ralo, como uma substância baldada, inerte. Mãe, minha mãe de sangue, se dizia preocupada com o acelerado derramamento de Lenir; mas julgo que, no fundo, se locupletava com a dor alheia, como em atitude mórbida, para constranger alguma reação iminente. Minha irmã intuía, com desgosto, o espezinhar, e por isso mesmo juntava os cacos de forças para, aos poucos, abandonar a dependência emocional, de ter de carpir no pedaço de chão que mãe determinava, como bem queria; para se sair de suas ordens inócuas.
Éramos eu, mãe e Lenir. O sabujo do meu pai, o homem que se gloriava de viver para o “trabalho”, não quis saber de nossas súplicas. Era dono de um prostíbulo e, para quem quisesse ouvir, afirmava que devia provar todas as mulheres que aportassem lá. Certa feita, o velho ficou doente de quase cair o pau, com uma doença desconhecida; a desgraçada de minha mãe, servil, teve de cuidar, limpar e besuntar com pomada de aroeira, sem fazer cara feia. O imundo se curou por obra do cão. Parece que, como dito, só deu jeito mesmo com as conversas que teve com o capiroto, porque, nas minhas contas e de Lenir, ele estava condenado a morrer de uma morte lenta, como merecia.
Para completar a maldição, o traste voltou animado, com ares soberbos, declarando que, se dessa tinha saído, não cairia nunca mais. Fazia contas para ficar rico. De fato, parece que ficou, por uns meses; mas nunca soubemos da cor do dinheiro. Enquanto isso, Lenir lavava roupa e carregava trouxas no lombo, comigo a tiracolo, entregando de porta em porta, recebendo a mirrada recompensa, que só servia para nos tirar do atoleiro. Não sendo besta, nem nada, não ia entregar tudo de mão beijada aos poderes de mãe; separava um bocado, como cinquenta reais, dinheiro de hoje, e comprava uma fartura na bodega. O combinado com seu Josias, o dono do estabelecimento, era de não revelar os gastos, porque, doutro modo, era capaz de mãe desfazer as vendas ou ficar com os regalos. Ele tinha um querer de pai e nos protegia.
Lenir, quando voltava da lavação e das entregas, comprava o que tinha de menos sustância e de mais amor, só para me ver feliz. Era bala, pirulito, alfenim, beiju; mel, farinha e queijo. Depois de nos fartarmos em nossas entocas, sobrava sempre um pouco de farinha e queijo. Contávamos que era presente do bondoso Josias, e mãe partia logo com a invertida: “Menina, tu abre do olho… esse velho tá se botando pra ti!”. Lenir ficava assustada, argumentando e repetindo: “Não… Não! Ele nunca se botou pra mim!”. A mãe, para continuar com a perseguição, afirmava, com sangue nos olhos: “Tá escondendo besteira, cunhã… Vou já contar para o seu pai”. Aí, eu tinha de entrar na jogada, para liberar minha irmã, e confirmava toda a conversa; dizia que estava o tempo inteiro com ela e que não havia nenhum enxerimento.
O que mais me doía era ver Lenir chorar. Ela chorava por tanta coisa; mal me atinava do fio da meada. Só eu a via uma grande fortaleza; e, na verdade, precisava de sua fortaleza para seguir. Tentava agradar, beijar, acarinhar de toda maneira, até que ela ia se acalmando e me retribuindo os agrados. Então, era certo, nos bastávamos, percebíamos no canto que estivéssemos – quantas vezes, incontáveis, nos buracos da casa e do escasso terreno, junto aos porcos e as galinhas; capoeiras e mourões.
O olhar de Lenir era ocaso e eu não me acostumava com isso. Era um olhar de se debandar a qualquer momento. Por mais que eu nutrisse um apego desmedido por ela e a dor da separação me acossasse, não conseguia fazer nada além. Meus membros não correspondiam à vontade. Estava esgotado de tentar furar a desordem instalada. Assim, simplesmente sentia o seu vagar, como se o espírito se despregasse do corpo, aos poucos; cada vez mais urgente, necessário.
Foi-se a mulher, não sei com que forças, numa manhã escaldante. Procurei seus vestígios pelos cômodos, e nada. Deixou uma carta, pedindo para eu aguentar as pontas, que logo mandaria dinheiro para o querido Josias me botar no ônibus.
O belo dia chegou, depois de seis meses; não podia acreditar que era verdade. Mãe roncava, embebida em cachaça; nunca fez conta. Com manobras orquestradas, Josias acatou os pedidos de Lenir e me despachou para São Paulo.
Devo tudo à minha amada Lenir. Uma moça de dezoito anos, experimentada nos grossos da vida, soube me fazer homem; e, hoje, como muito gosto, quem cuida dela sou eu. Trabalhou duro para me sustentar, de sol a sol, enfrentando os concretos da cidade sem amor. Ela ainda se queixa: “Jerônimo, não se avexe com nada não; eu sei me virar”. “Eu sei que você sabe. Mas não é possível que um juiz não possa determinar a sua derradeira paz”. Rimos e nos acarinhamos, como meninos do Alto do Seridó.

***

Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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