OS DEDOS COÇAM

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OS meus dedos coçam. Estou sentado numa cadeira plástica vermelha com as rachas a denunciar o cansaço. Olho para o teclado do computador, vejo letras espalhadas, baralhadas, um jogo de baralho. As cartas dispostas na mesa, outras no chão, já cansadas de passar de mão em mão para enganar as horas, fazer o tempo passar, suprir as perguntas que perturbam a mente nas horas vagas. Às vezes, a inspiração é um inimigo indelicado. 

Olho para a minha mesa, cheia de papéis, são muitos papéis rasgados, textos rasgados, recusados, chumbados, não passaram no exame, testaram negativo. Estão prestes a ir para o lixo, foram tantas horas a definir os melhores termos, as palavras mais complexas, é difícil escrever para ser compreendido. 

Acarinho o abecedário, a tentar ganhar simpatia das letras para que busquem frases que impactam a vida das pessoas. Tenho que definir novos nichos de leitores, às vezes cansa ser um prozador avarento que escreve para classes intelectuais, que não se curva no Face a implorar a compra de seus livros. Sou escritor de outras dimensões. 

De dimensão menor, o bloco de notas sujo e cheio de rasuras disputa o espaço com outros objectos na mesa. Não mais consigo ler o que lá vem escrito. O gravador, o gravador…

Já não consigo definir esse chão, o cimento cedeu lugar ao carpete, mas a areia teima em ocupar este lugar. O calor é intenso, o suor molha a minha face, passa pela  minha boca e sinto esse gosto salgado, amargo, a percorrer a minha boca, goela abaixo, preenche um lugar que a comida não conseguiu ocupar. Olho para o meu prato, junto ao gravador, ao bloco de notas, não há mais graus de arroz para prenché-lo. A colher plástica tocou no seu fundo. Não restaram nem migalhas para as baratas que sondam o quarto.

“As Duas Sombras do Rio” está escancarado no chão, folheei um pouco, tentei ler as primeiras linhas, falta-me concentração para degolar estas letras adormecidas ao longo de tantas páginas. São tantas páginas para uma mente só.

 Meus dedos coçam. O cérebro está sobressaltado. Coloco a mão no copo que ocupa um dos cantos da mesinha, é suave essa sensação agradável do gelo, do frio, quando nos penetra a alma pelas veias dos dedos e pela garganta. Engulo a saliva para amenizar o gelo na garganta, é tanta frieza deste líquido.

Fecho o computador, ligo dados móveis e movo-me de Face em Face em busca de faces novas para interagir, distribuir likes e simpatias. 

O dia avança, o sol cada vez menos intenso, cede lugar para o silêncio da noite. A buzina da locomotiva apita, uma desculpa para a minha falta de inspiração. Mas não existe texto sem transpiração. A água gelada tapa os poros. O suor já não escorre.

 O chão começa a tremer, o ruído, vagões perturbam a minha concentração, já não tenho forças para tantos adoros no Face. Crianças regozijam, o comboio está a passar. Pelas gargalhadas lá fora, deve estar carregado de esperanças. Outro dia, irei mergulhar, uma vez mais, no “As Duas Sombras do Rio”. Por agora, escuto a buzina que vai desaparecendo, levado pelo vento, entre as folhas…

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Encontrou na escrita o tubo de escape para a vida. Nasceu no Posto Administrativo de Malehice, distrito de Chibuto, província de Gaza. Foi lá onde deu os primeiros passos da vida. Formado em Jornalismo pela Escola Superior de Jornalismo e em História pela Universidade Eduardo Mondlane, é membro da Plataforma Mbenga Artes e Reflexões desde 2014. Além de escrever, também edita e sonoriza o programa radiofónicos desta plataforma, intitulado Conversas ao Meio Dia, que vai ao ar todas as sextas-feiras, na Rádio Cidade. Pretilério Matsinhe colabora igualmente com muitos outros jornais da praça!

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