Mudar de vida/2

Por: Pedro Pereira Lopes

Já não tinha certezas. Era um vulcão de dúvidas. Tinha por tão patética a sua vida, ao ponto de indignar-se, apenas por respirar um ar mais puro. Como homem, valia pouco. Não tinha um diploma universitário, era incapaz de conceber e vivia do que conseguia furtar. Levava até uma vida confortável, com uma dor humana quase imperceptível. Estava decidido,

não viveria mais aquela vida.

No dia seguinte, visitou os pais e saldou meia dúzia de contas que tinha: era o que era, mas tinha ainda alguns princípios no bolso

(os quais, de quando em quando, exibia como um relógio de pulso). No final da tarde achou uma boa sombra e imobilizou o carro que havia furtado tinha duas semanas. Esvaziou uma garrafa de gin e engoliu um bom número de comprimidos que encontrara numa gaveta da mesa-de-cabeceira. Sentiu ainda mais nojo de si mesmo, morreria como uma mulher. Subiu os vidros negros

que vedavam a visibilidade do interior do veículo

e bloqueou as portas. Um minuto depois, era quase certo que encontraria a morte.

Depois de uma hora, e porque aquele era um troço público de considerável trânsito, o primeiro curioso abeirou-se da viatura. Viu muito pouco. Não fez caso e caminhou em direcção ao caos da cidade. No quarto de hora seguinte, um grupo de crianças espreitava pelas janelas escuras, e depois quatro adultos. O homem dentro do automóvel espumava. A multidão forçava a porta, surrava os vidros e gritava. Chegou então a polícia que, com a parte traseira de um kalash, partiu a janela de passageiro.

No hospital, apenas a mãe chorava.

Um ladrão não merece viver, dizia o pai. Que o tivessem deixado morrer.

O homem acordou do coma, dois dias depois. Tinha sido desintoxicado e sentia-se outra vez novo e forte, porém decepcionado: não servia até para morrer.

Na manhã do terceiro dia, muito cedo, sem a ordem do médico, ele teve alta. Os enfermeiros aperceberam-se tarde que lhes faltava um doente. Aliás, faltavam-lhes um doente e cinco computadores da enfermaria. Na sua cama, tinha um bilhete escrito:

Eu não merecia outra vida.

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