Dormir?

A noite possuiu um camaleão, corre devagar como se não desejasse perder a tranquilidade que lhe é nata. São duas horas da madrugada. Duas horas, 36 minutos e 47 segundos para ser mais preciso. As pessoas dormem, as estradas preparam-se para dar alento ao destino dos humanos assim que amanhecer, é ofício delas, morrer para dar vida aos desesperados.

Os galos encolheram a crista, tocou-se a última música, desligou-se a última lâmpada, apagou-se o último sussurro, só o que resiste é o tic-tac do relógio que abraça a parede e a respiração ofegante da Zulmira.

Está deitada de barriga, agarrada à almofada com seus dedos finos e curtos. Seu lençol está encharcado de suor, suas mechas com pontas azuis cobrem uma parte do seu rosto delicado. Suas sobrancelhas continuam milimetricamente alinhadas e os seus lábios ressequidos mexem-se levemente como sinal de vida.

O tecido fino deixa descoberto as suas costas. Vira-se e deita-se de lado. Do ângulo onde me encontro dá para sentir o ar quente da sua respiração. Passeio meus olhos e detenho-me na sua mão esquerda.

O anel no dedo ilumina o ambiente. As recordações me levam para o dia do noivado. Era um sábado, 18 de Setembro, o sol deambulava na terra, ajoelhei, tirei do bolso aquele objecto, olhei nos seus olhos cheios de vida, acariciei o seu rosto, beijei a sua mão e disse: meu corpo e minha alma agora são seus, meus pensamentos a si pertencem, meus desejos serão sempre afogados no calor dos seus braços, meus olhos escurecem quando está longe.

A maquilhagem da Zulmira já se esborrava pelo rosto. Beijou o anel e me abraçou. Deixou a marca de batom no meu casaco azul-escuro, antes da sessão de fotografias com as amigas, e disse: eu vivo em ti agora, és minha morada.

Uma gota de água pinga na minha bochecha. Aparto-me das lembranças quando uma lágrima escorrega e pinta o meu rosto. Limpo o rosto, pego no telemóvel e leio mensagens no Whatsapp.

– Dormir é uma forma de conversar com os espíritos, disse uma vez a Zulmira, quando me flagrou numa madrugada, sentado na cadeira de madeira, na sala de estar, com uma esponja que já reclama da idade.

– Ou é uma forma de morrer diariamente, ripostei e revirei os olhos, enquanto troco de canal televisivo.

São quatro horas. Deito-me e escuto o saxofone dos galos lá fora.

……

Sentado agora, no autocarro, confesso-me: sou um mentiroso por cobardia. Deixei de obedecer o meu corpo, os meus instintos animalescos venceram as minhas batalhas mentais, os meus pensamentos deixaram de ser dela, a minha alma se desvirtuou. É isso, dormi com outra mulher. Dormir é uma forma de dizer, deixei-me possuir por outro calor, o tal extraconjugal que o padre insiste em invocar nos sermões. O fruto completa hoje 4 anos de idade.

O autocarro avança sem dó, mas com a piedade dos buracos que marcam a via. Da minha cadeira, contemplo a dança dos mamilos das passageiras quando o veículo bate numa cova e freia de repente. 

No corredor, dois jovens asseguram o corrimão enquanto se apressam a vaticinar o futuro.

– Quando casarmos, tu nem te atreves a pensar que vais apanhar sono, diz a rapariga.

– Dormir é uma forma de esquecer os dissabores do dia, riposta o namorado, enquanto contempla, pelo vidro, o verde das árvores. A menina coça o cabelo e aperta a mão do rapaz. A vida não precisa de dissabores, comenta, enquanto passa o lenço, com a outra mão, no rosto do namorado. – As amarguras é que precisam da noite para se afogarem, diz o jovem, enquanto conta as moedas para pagar a viagem.

Reparei-lhes, escutei e engoli a seco. Quando se é jovem se pensa que o casamento é onde descansam os problemas.

Olhei para o cobrador, ajeitei os óculos e tirei o valor da carteira. 11 Meticais. O homem reclamou: faltava 1 Metical. Forcei um sorriso, coloquei auriculares e continuei a viagem.

Desço na paragem Shoprite. Caminho de forma desajeitada para não chamar atenção de ninguém. Entro na Praça da Paz. Todos os anos é assim, quando a minha filha completa anos nos encontramos ali para celebrar.

Vejo ela sentada na relva, uma cozinha imaginária emerge na sua cabeça, mexe os pauzinhos e usa o véu do vestido cor de rosa para limpar as mãos. Recordo-me, comprei-o com o valor que devia ter pago a factura de água lá em casa. E sorrio.

 Aproximo-me para cantar os parabéns. Minha mulher ressurge na cena com um bolo de aniversário, está acompanhada da minha outra, mãe da menor. Olhamo-nos e só consegui dizer:

– O dia está quente para se comemorar um aniversário…!

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