Outros racismos?

O racismo invadiu o mainstream. Floyd, outro mártir da luta pela Humanização do Negro na dita civilização. Foram precisamente 8 minutos e 46 segundos que o elevaram a símbolo da velha segregação que insiste e negar a humanidade de homens, pela cor da pele.
Nestas circunstâncias, José Craveirinha continua certeiro e actual na imagem que escreveu no poema “Ninguém”. “(…) E um transeunte curioso
Que pergunta:
– Já caiu alguém dos andaimes?(…)/(…) E a tranqüila resposta do senhor empreiteiro:
– Ninguém. Só dois pretos.”
É esta negação de familiaridade para com um ser humano igual, aliás, de cor diferente.M. “I can’t breathe” virou um coro global, uníssono. E entre os nossos internautas esfumou-se.
Há umas semanas chamei hipócrita a atitude de, ao ritmo de todos, os nossos internautas terem se envolvido na causa, quando Cabo Delgado, na minha opinião, não estava a ter a atenção que merece. O que mudou. Nisso, generalizando, fui injusto com, entre outros, intelectuais como Feijó, a Lizzart, o professor Yussuf que há muito têm denunciado o problema. Fui igualmente com os jornais, que têm sido a esfera pública da situação discutir Cabo Delgado. Deste modo retrato-me.

Não obstante, não deixa de ser problemático que abracemos modas e não causas. A prova disso é que hoje já nem se fala do assunto. Já perdeu o interesse. Não sei de que qualidade é esse tipo de indignação que dura o tempo que os algoritmos, levam a introduzir novos dramas.
Entretanto, o racismo e todos os outros esquemas de exclusão, pelo menos é suposto, devem de facto revoltar-nos mas não apenas para fazer uma marcha, um post, uma partilha. É para destruir. No essencial, trata-se de humanos.
Resumindo: está tudo ligado. Olhando para a História, recupero o facto de os movimentos independentistas terem, em larga medida, iniciado nas diásporas africanas. Ou seja, o que acontece ao Negro norte-americano, ao brasileiro e outro no dito mundo civilizado pode ter efeito em África. Daí que me ocorre a preocupação de olhar para o racismo enquanto um sistema de dominação pela cor e questionar a natureza dessa relação de poder (alguém que impõe e alguém que vê-se numa circustância de não ter outra opção a não ser aceitar) com gente da mesma raça.

O racismo é uma instituição robusta, construída com uma fundação sólida, secular. É, dizem-nos Fanon, Stuart Hall, Achille Mbembe, Severino Ngoenha, uma série de discursos, de narrativas, de construção de imagens…enfim, de discursos.

É, sobretudo, uma instituição que sustenta privilégios, oportunidades, acesso a recursos (educação, formação, emprego).
Hitler não morreu, a sua visão de mundo mantém-se intacta. O nazismo alicerçou-se numa pretensa superioridade racial. E o que é o racismo? Com o agravante de as câmaras de gás no ocidente (só?) estarem a céu aberto: a rua ou qualquer outro lugar no espaço público onde o agente da polícia atira contra o negro, alegadamente, por tê-lo confundido com um assaltante. Ou seja, nessa visão alienada, a cor da pele determina a conduta, o caráter, os valores, a ética do sujeito.

A polícia, na verdade, surge como o rosto mais visível desta problemática ainda mais profunda. Sílvio Almeida, por exemplo, explica tratar-se de uma questão estrutural. Há uma série de infra-estruturas discursivas, ideológicas e de várias outras espécies que dão vida a esta natureza.

Recordo-me de em 2018 chegar ao Rio de Janeiro e uma voz simpática carioca, ainda no Aeroporto, dizer-me: não corras, jamais. A polícia podia ver nisso uma razão para atirar, eu estava em Botafogo, zona Sul. “Neguinho” correndo na rua é um risco. Eu saia sempre com o crachá do Festival de Cinema do Rio (que era a razão da minha estada) para defender-me de uma eventual investida. Felizmente, em 15 dias, nunca precisei usar.

Paulina Chiziane há muito que de forma reiterada denuncia essa instituição (racismo). Pede para se incendiar os livros que sustentam os seus pilares.

Paulina solicita um tsunami sobre a muralha, parafraseando Mbembe, que sustenta a biologização, a filosofia, o pensamento (a cultura), a história que desumaniza o Negro (o Outro que não pertence a família humana ou que, pelo menos, não é tão humano quanto os nativos europeus).

No contexto ocidental a escravatura é (talvez) hoje outra máscara que se usa para defender o indefensável e manter a distinção entre os Homens pela cor da pele. Ora vejamos, o Brasil teve trabalho escravo italiano; O Brasil teve trabalho escravo (vejam a designação dos livros e da media) africano. Mas não vemos hoje os italianos a viverem como os Negros, sempre empurrados para os guetos e favelas do mundo. Não me parece que seja apenas o passado escravocrata que condena ao Negro, é mais profundo.

Em Lisboa, no mês de Fevereiro deste ano, deixei de frequentar o Café Pão de Açúcar, na Almirante Reis, Alameda, porque um ignorante de idade, que ainda por cima ocupa jornais, revistas e livros que podiam salvar o mundo nas mãos da rapaziada de Chalambe, abandonou a mesa para não partilhá-la comigo, um Negro. A estupidez (goste-se ou não) não tem raça (raça? [um vício do vocabulário?]). Naquele instante apenas recordei-me do bobo da corte do Rei Lear, de William Shakespeare, lamentando, sobre o Soberano: coitado, morreu velho, sem ser sábio.

África e Negro, a concordar com Mbembe, cabem no mesmo signo. Daí que as lutas das diásporas africanas e as dos Negros residentes em África, com as nuances condicionadas pelos contextos continuem a ser as mesmas. Ambos, em larga medida, ainda clamam por dignidade, pelo reconhecimento da sua humanidade.

Ocorreu-me, enquanto escrevia, um episódio que cresci a ouvir reproduzir-se (respeitando todos os riscos do “ouvir dizer”) em Inhambane sobre lodges com a escrita, na entrada: NO BLACK, ainda na primeira década do novo século. Recordei-me igualmente que a Julius Nyerere, avenida nobre de Maputo, é, essencialmente, branca. Ainda assim, nosso buraco é mais embaixo. Se o racismo é uma instituição opressora que garante os privilégios de uns em função da cor. Que designação daríamos a estrutura de privilégios que beneficia a uns em detrimento de Outros em função de carregarem determinados apelidos, simpatias partidárias (não necessariamente políticas) de seres humanos da mesma raça (raça?)?

Digo isto observando que detentores de determinados apelidos, por exemplo, têm os caminhos mais facilitados para acesso à educação, emprego, network entre outros que possibilitam a liberdade financeira e intelectual. Que é justamente a parede que os Negros no ocidente pretendem derrubar. Mas enfim…é só um comentário.

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