O relógio não quer saber

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O sol com mais receios do que eu, por volta das 6:00 horas, cedeu as nuvens que bocejam uma cacimba espessa. Estico da Rua 2 até à paragem, na Avenida de Moçambique, no bairro 25 de Junho.

Na paragem: uma multidão acumula-se no ponto mais provável do chapa parar e estratégico para, caso estacione noutro ponto, corram por um lugar. Sentar não é a preocupação, esse é um luxo dos privilegiados da terminal. E de outros sortudos que vão surgindo no percurso. Ao aproximar-se um Coaster, já todos com os rostos cobertos por máscaras de capulanas, aquelas do hospital, em diversos modelitos. Todos apinham-se para penetrar nos escassos centímetros possíveis entre os humanos a forçarem a entrada. E baza, só levou duas pessoas.

Outro chega, um Rosa a cair aos pedaços e o cobrador, depois de cruzar o semáforo, estica o braço pela janela: do tipo, calma…!

– Só tem lugar para uma pessoa, se lutarem ninguém vai – avisou o cobrador de gorro escrito “hope” e uma máscara em baixo da boca. Aponta uma tia: “madala, vamos!” Murmúrios das donzelas, as Zodwas da vida, trombudas. Nem o Mark X dá boleia por estes dias. O chapa bazou e cuspiu fumo, um patrocínio para ira e, imediatamente, os insultos. Em instantes a serenidade retoma à espera. Os chapas passam cheios. O relógio quer lá saber? Está-se nas tintas para a nossa pressa. Uma música chama a outra. Mark Exodus, Nandele, Trkz, Tégui…a playlist corre.

O semblante dos impacientes é tomado por uma satisfação repentina quando vêem que, na Sucata, dobra a avenida de Moçambique um Smart Kika azul.

Mascarado, entro para o autocarro, não há acento vazio e a cobradora ordena: abaixem-se, não queremos problemas com a polícia. De cócoras no corredor, do lado de fora a polícia não nos alcança. “Tenho de chegar ao job a tempo, meu chefe não quer saber da Covid”, penso.

Na Brigada outrora montada, muitos descem e consigo um lugar para me sentar. E o motorista vhuna para não dar espaço ao Hiace que vem da Matola. O motorista segue, tem de levar a todos que o outro poderia levar. Os murmúrios falecem na pressa de todos.

Ele vhuna até a baixa.

Apressado, amarfanhado, ofegante, caminho.

…abro a porta do escritório com mais receios do que o sol que já impera lá fora…o relógio não quer saber, a única patologia que conhece resolve-se com pilha.

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É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

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