Ho Chi Min não entende

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O país que amo está enfermo

– Eduardo White

Inalando os odores e as conversas soltas a gargalhadas patrocinadas por vinho e cerveja, do Mercado do Povo, está sentado com um semblante que denuncia tristeza, o Ho Chi Min.

Sempre perguntando ao Felipe Samuel Magaia e ao seu mestre, Karl Marx a razão dos citadinos de Maputo temerem olhar-se no espelho. Ambos não conseguem uma resposta digna. Apenas entreolham-se, até porque nunca cruzam-se de facto, embora caminhem próximos.

Ninguém consegue responder ao velho Ho Chi Min, o que só amarfanha ainda mais o seu rosto já coberto de dobras. Tal pergunta resulta da crença de que a arte é um espaço no qual uma sociedade está reflectida.

Na sua opinião, a partir de alguns desvios – no sentido de que vivem numa lógica outra -, isto é, os artistas, o tecido social é costurado, de forma fragmentada, em obras nas diferentes disciplinas artísticas.

Tendo acolhido, com imenso o prazer o Museu Nacional de Artes, a sua expectativa era tornar-se um dos mais badalados destinos da capital do país, a suposta metrópole, onde até garagens tornam-se universidades. Debalde.

Sempre que o dia nasce, enquanto o sol beija o asfalto e é barrado pelos ramos das árvores, a sua esperança renova-se. Debalde. Somente os funcionários do museu são vistos a entrar.

Os outros citadinos, indiferentes, passam pelo, provavelmente maior acervo de artes contemporâneas moçambicanas, no que as artes plásticas diz respeito. Ho Chi Min observa que eles cruzam como se estivessem diante de um não lugar.

O velho não entende que ignorem que ali está o seu reflexo – ele pensa que talvez o problema seja esse mesmo: o reflexo -, o seu retrato. Não cabe no seu entendimento, que eles não entrem. Até os botões da sua balalaica já nada comentam, fartos de inventar respostas.

Para piorar, certo dia, um anonimo, admirador de Noel Langa, Mankew, Bertina Lopes, Malangatana, Naguib, Chichoro, contou ao velho alguns factos que o deixaram ainda mais intrigado.

Com a memória já falha por suportar todos os pesos dos prédios, dos carros, dos polícias, das prostitutas e dos cães, recorda vagamente de alguns excertos:

– Sabe? Velho Ho Chi Min, o Luís Patraquim contou-me que Mankew, fá-lo subir ao céu através da pintura daqueles rostos de Marracuene que o transportam de volta às casas de cal da, outrora, vila colonial.

Ainda a puxar pelo fio da memória, a procura de quem lhe terá contado tal experiência, viu Marcelo Panguana a chegar e, com nostalgia nos olhos, conhecendo a frustração do seu do seu velho amigo, contou-lhe que há pouco tinha revisitado Agostinho Muthemba cuja pintura ter-lhe-á encantado por retratar o quotidiano das décadas 50 e 60.

O escritor, como um louco ao fim da tarde, sem que o Ho Chi Min nada dissesse foi-se embora, em direcção ao “Povão”, a procura do vagabundo da pátria.

Sozinho a observar que a história mora naquele lugar onde as obras dos artistas que ouviu falar estão patentes foi ter com a ex-directora do Museu Nacional de Arte, Julieta Massimbe, que, frustrada, apenas comentou não perceber a razão para, por exemplo, ninguém se disponibilizar a, voluntariamente, ir ver a pintura de Samate que recria a realidade através da forma. Ela estava apressada, havia gente a sua espera, de forma elegante,despediu-se e foi embora.

Numa última tentativa, Ho Chi Min, foi ter com Cabrita para perceber a razão do abandono do museu. O jornalista respondeu-lhe que ele é que faz a perguntas, respostas não são com ele. Não obstante, culto, afirmou-se espantado com a ignorância sobre Matias Ntundu cujo imaginário é sustentado pelo quotidiano da sua aldeia, em Nondimba, Cabo Delgado, o que permitiria, sem precisar deslocar-se para lá, conhecer aquela parte do país.

Em abono da verdade, ninguém deu-lhe a resposta que lhe fosse satisfatória. Com o queixo na mão perguntou-se porquê que esta gente teme entrar para o Museu Nacional de Artes, onde está retratada a sua forma de pensar, o seu imaginário?

Olof Palm, que caminhava ao cinema Scala, ouvindo-o aflito, gritou, o problema talvez seja a educação. Com o seu vigor característico, de andar carismático, Samora Machel abandonou o seu posto, em frente ao Conselho Municipal de Maputo, provavelmente cansado de ser apenas objecto de adorno, chegou dizendo ao Ho Chi Min: de facto ainda há muito a fazer na construção do Homem novo. “A luta continua”, voltou para a sua condição de estátua, assobiando, a melodia de Miriam Makeba, provavelmente contagiado pelos espectáculos do Centro Cultural Franco Moçambicano.

 
lEONEL2

Acredito que pequenos gestos podem mudar o mundo. Encontrei no Jornalismo a possibilidade de reproduzir histórias inspiradoras. Passei pela rádio, prestei assessoria de imprensa a artistas e iniciativas. Colaborei em diversas página culturais do país. Actualmente sou repórter do jornal Notícias. A escrita é a minha arma”.

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É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

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