PALAVRA : ALUCINÓGENO – UMA CONVERSA COM FÁBIO PESSANHA

Fábio Pessanha é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre suas pesquisas, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Assina a coluna “palavra : alucinógeno” na Revista Vício Velho (https://viciovelho.com/palavra-alucinogeno). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens e na própria Vício Velho.

O poeta precisa matar a voz do homem para encontrar em si a diferença num mundo de pessoas e coisas, evocar a palavra é cavar a metafísica. Fábio Pessanha, é um escritor de poemas que se deixa aparecer assim.

Hirondina Joshua: Fábio Pessanha. O teu nome faz lembrar Camilo Pessanha e o centro do simbolismo português.

Fábio Pessanha: sou fábio pessanha, poeta. não sei se abuso ao dizer que o signo me deslumbra para além ou para dentro das margens do literário; ou do que permita ser imagem ou coisa a ser pensada na poética de um poema. não sei (me) dizer, mas sei propor algumas incoerências, talvez férteis – quem sabe, nem tanto – para as imagens, estas que podem provocar um deslocamento no que propõem como (não tão) evidente. a suposta semelhança entre mim e o Camilo Pessanha incita uma ficcionalização poética a respeito dos nossos nomes, a respeito do próprio âmbito das palavras ou do que elas provocam enquanto pensamento e imagem. de forma alguma me ponho em comparação ao grande poeta português citado, muito menos me perceberia no percurso de um lirismo simbólico, cujas vestes palavrais se tornam o arcabouço inatingível de respostas plausíveis. fico na encruzilhada. não sei o que dizer. tampouco afirmar o que do meu nome sou eu.

gosto de pensar na palavra como imagem. um desenho que tenta traduzir em traços a transitividade do dizer. palavra é jogo. lance. etimologicamente traz no corpo essa efervescência: do grego paraballein, quer dizer estar lançado (-ballein) no “entre” (para-), portanto, o meio de caminho para o que está sempre por vir, a corporeidade simbólica do voo. já símbolo diz aquilo que reúne (symbálleo), o que traz para a presença o que era ausente. uma evocação. mas poesia não evoca, ela é presença. Ou melhor, evoca e se apresenta no próprio chamamento. vigora. não trata de representação, mas da realização de tempo e memória manifestando-se como palavra e voz.

HJ: Em tempos de guerra, fome e doenças, falar de artes ou disciplina literária é um absurdo? Com o que olhos devemos olhar.

FP: é muito necessário que se fale, e sempre mais, sobre e partir da arte. em sua manifestação poético-filosófico-literária, a arte revivifica nosso olhar, nossa relação com o real. não podemos entender o trato com as artes enquanto uma contemplação, uma abstração, e sim como uma ação concreta. no caso específico do literário, é necessário assumir a palavra como nosso próprio corpo. sentir na escrita ou na fala uma força concêntrica, fundamental para que estejamos cada mais presentes em nós.

o diálogo com a arte está mais para uma ressignificação do próprio existir. não me refiro às obras como produto de uma artesania técnica, e sim à dimensão em que a arte se propõe como um modo de estar no mundo. o poema, mais notadamente, não seria só uma construção intelectual. tratar-se-ia de uma investida para dentro do que nos incomoda e, simultaneamente, da exteriorização de nossa criticidade em virtude de nosso entrosamento com a realidade.

HJ: As traduções por elas perderem as línguas, não serão urgentes e necessárias para que se faça o texto? O livro. A interrogação. A visão?

FP: não entendo a tradução como a perda de uma língua, mas sua densificação na possibilidade de ser outra nela mesma. acredito vivermos em estado de tradução. traduzimo-nos enquanto pensamos e quando nos dizemos para o outro (ou para nós mesmos). tradução. transliteração visual do que por mais que se tente, nunca se poderá dizer. será sempre um algo diferente. o “nós” sendo o outro do outro. a língua em sua íntima relação com o que dela é transitiva, e tal colocação me faz lembrar do último verso do poema XLVIII, de Fernando Pessoa, presente em O Guardador de Rebanhos, na voz de Alberto Caeiro: “passo e fico, como o universo”. assim, na incompleta completude da linguagem, habitando o que de silêncio é voz, vejo nessa metáfora o indiscernível, o indissociável entre língua e linguagem, na medida em que uma se alimenta da outra, traduzindo-se incessantemente. vai e fica. um paradoxo necessário.

os livros, estes estão além de um suporte reificado. podem ser também compreendidos como possibilidades para possibilidades, quando palavras são corpos pulsantes, infinitos e infinitivos. uma substantivação do livrar-se. uma percepção do livro para além de um suporte, de um objeto palpável. até, quem sabe, uma consubstanciação.

a interrogação é uma possibilidade do ver, pois só se questiona aquilo que está visível. perguntamos pelo que vemos, pelo que sentimos, com o cuidado de não restringir o sentir ao critério biológico da visão. do corpo como pele. corpo é mais. corpo é mais que pele, é mais que corpo. é mais. corpo sente e é sentido. mais. corpo arvora. aduba e incorpora. corpo é cavalo. é mais. corpo é tradução. a interrogação que essencializa o ver no saber. a visão se dando como interpretação. o estímulo sensorial assimilado e tornado corpo conosco. o desdobrar-se num modo de pensar. o ver como pensamento. iluminação. porque só há visão onde há luz: clareira.

HJ: A poesia transforma ou é transbordadora? “há dias em que os olhos acordam sem as mãos”. Li algures numa obra ainda a escrever.

FP: penso que a poesia é tanto transformadora quanto transbordadora. creio que ambos os movimentos se dão mutuamente: transforma porque compõe a instância do que aparece, do que comparece na vida de cada um. a percepção dessa copertença faz com que, sem romantismo algum, nos tornemos cientes da ambiguidade que somos. acredito não ser necessariamente uma transformação visível, e sim resguardada no modo silencioso como nos relacionamos com a realidade, com as pessoas.  

permito-me o quase desvario em tentar habitar o que transmuta, estar nessa passagem. se muda, então há transbordamento. observamos uma prática que vai além (trans-) do que se dá a ver enquanto aparência (-forma). essa excessividade necessária ao poético diz o incólume dos nomes. sem lógica que compareça ao raiar dos dias racionais, propõe-se um estado constante de perdição, o júbilo por comparecer aos desvios de si próprio. não se trata de uma viagem na maionese, pois mesmo para uma poesia mais cerebral, que conte com a métrica das regras ou com o consciente desprezo delas, ainda assim há vislumbre para o absurdo. a suposta limitação de uma arquitetação rija seria, ela mesma, a disposição para a irrupção do ilimitado. limite não significa retenção, e sim tensão contínua de forças que se movem e se retroalimentam: energia dinâmica.

acho bem inocente quem defenda nos estudos de poesia o cerebralismo como algo puro, coisa de quem não percebe o rastro sarcástico dos que usam as formas para delas se livrarem. um livrar-se que está mais para o adentramento daquilo de que se afasta. loucura maior seria estar contido no que se aparta. uma tensão constante. por isso, gosto de pensar no poético como esse desdobramento entre ser e aparecer. o existir. não há dicotomia. a assunção do antagonismo seria uma leitura ingênua de Platão, quando se defenderia a oposição entre mundo sensível – das coisas com as quais temos contato; e inteligível – das ideias. não há rivalidade. há penetração conjunta, transformação e transbordamento. há indiscernibilidade de fronteiras.

nem sempre temos o corpo que pensamos ter. nem sempre estamos cientes de que não estamos/somos completos em nossas lacunas. há dias… em que dias há. mãos aos olhos, mas “há dias em que os olhos acordam sem as mãos”. há dias que não se pode deter o que chega a reboque das pálpebras. há dias que nem olhos há. tampouco mãos. o que está para se escrever já está escrito. no silêncio mora a palavra ainda não dita. no corpo habita o signo infindo das frases e cada palavra se torna a ironia de uma visão sem tato. há dias em que não quero ter mãos para enxergar meus olhos.

HJ: Sei que esteve a estudar bastante a obra do nosso poeta Virgílio de Lemos. O aparecimento do outro. Algo parecido em termos de divisão “personal” se me permite, ao Pessoa. Uma mulher no meio disto: a Lee-Li Yang.

FP: debrucei-me sobre a poética virgiliana durante meu mestrado em poética (2009-2011), na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, na verdade, desde um pouco antes, quando quase no fim da minha graduação conheci a obra de tal poeta moçambicano, a partir das aulas com a Carmen Tindó. de início, o heterônimo Duarte Galvão chamou muito minha atenção, depois percebi que o mundo poético do Virgílio era imenso. logo entrei em contato com ele, e passamos a trocar emails, algumas vezes nos falamos por telefone. infelizmente ele faleceu em 06 de dezembro de 2013, durante a produção do meu livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013), fruto da minha dissertação de mestrado sobre um recorte de sua obra. acho que ele se foi cedo demais, considerando que ainda tinha tanto para dizer.

sua referência ao Pessoa é clara, este sem dúvida alguma fazia parte do universo de influências do poeta moçambicano, tanto que um de seus heterônimos, o Bruno dos Reis, é uma menção direta ao Ricardo Reis. mas, apesar da forte interferência pessoana, a voz do Virgílio mostrou uma dicção muito própria. a heteronímia virgiliana foi uma experiência bastante singular, em que vozes se fizeram autênticas; onde o teor político, as imagens surrealizantes e os aspectos específicos da cultura moçambicana compuseram o arcabouço poético-imagético de tal poeta, e cujas identidades heteronímicas se mostravam independentes ao mesmo tempo em que travavam um diálogo com a perspectiva do autor que lhes deu movência. eis uma questão hoje bastante discutida nos estudos de poesia, o fato de as vozes se tornarem cada vez mais próximas de uma fala autoral, num tipo de autoficção poética.

chegamos a conversar sobre a Lee-Li Yang e a importância de uma voz feminina num lugar ainda tão tomado por poetas homens. ele me enviou um livro que publicara só com poemas da poeta macaense, intitulado Meu mar de tochas líquidas, editado pela Escola Portuguesa de Moçambique – Centro de Ensino e Língua Portuguesa, em 2009. segundo António Cabrita, no posfácio escrito para o referido livro, Yang foi o primeiro heterônimo feminino de que se tem notícia.

a ficcionalização poética de uma voz feminina teve o intuito de denunciar o machismo da época, o qual, apesar dos anos e de algumas mudanças, ainda continua vigente no mundo. em entrevista dada a Carmen Tindó, o próprio poeta diz ser Lee-Li Yang uma “mulher independente, numa sociedade colonial machista”, que “metaforiza o corpo do desejo de uma escritura que se faz arma política de libertação feminina” (entrevista presente no livro Eroticus moçambicanus, organizado pela Carmen Tindó e publicado pela Nova Fronteira, em 2009). infelizmente, dos poemas escritos à luz da voz de Yang só existem os publicados no supramencionado livro. creio que seria muito interessante relê-los à mediante às atuais discussões acerca do feminismo e do feminino. 

HJ: João Cabral encanta por ter um lirismo pensado. Há quem diga que o lirismo não pensado vence por deixar a alma à espreita. Esse assunto é interessante porque podíamos questionar o que é isso que se chama alma ou calma de algum modo.

FP: lembro-me de já termos falado sobre esse assunto, a respeito de um tipo de lirismo que chamei de lirismo pensado, quando, apesar do enfoque dado à forma, ao cuidado métrico, o poema se tornaria densamente lírico, emocional. tal expressão – “lirismo pensado” – não é novidade, haja vista seu uso em discussões que tratem da ambiguidade de uma poesia marcada pelo sentimentalismo, só que de maneira bem arquitetada, então, que transita entre o lírico e antilírico. dando continuidade ao tema, prefiro acreditar que o limite imposto pela formalidade intensifica ainda mais a brutalidade lírica de um poema, na medida em que os conceitos literários sejam continuamente repensados. inclusive a ideia de conceito exercerá seu real papel, isto é, o de funcionar como demarcação de um momento em função de determinada experiência empírica. o lirismo servirá mais como potência velante do que propriamente uma revelação. a força do que está por se dizer é muito maior do que aquilo que se manifesta num gesto anunciado. é interessante mencionar o lirismo pensando, onde nesse “pensado” reside a movência do questionamento constante para aquilo que se possa compreender como lírico.

não sei se é o caso de se cogitar quem vença ou não, se um lirismo pensado ou não pensado, por mais que existam os que defendam uma poesia cerebral e aqueles que vão mais pelo feeling da criação. em poesia, não há competição (pelo menos, não deveria haver). de qualquer modo, essa discussão pode sim nos levar a pensar a alma, que alude a um suposto lirismo “que vence por deixar a alma à espreita”, no sentido de uma poesia elevacional, em que a/o poeta se entregaria aos sentimentos para se permitir jorrar poematicamente sem muito mensurar o que está fazendo. creio que a espera por esse entusiasmo poderá promover o empobrecimento da elaboração poemática. técnica não necessariamente quer dizer o esfriamento emocional. imagino haver certa ingenuidade nessa compreensão, caso não consigamos perceber a ambiguidade que a estratégia pensante do poema provoca, pois, como lemos desde o diálogo Íon, de Platão, seria mais prudente, interessante, perceber uma poesia pensante – que também congrega os aparatos técnico e emocional, além de permitir ser a/o poeta o lugar de reunião dessa imbricação técnico-criativo-entusiasmante – do que se engessar num vislumbre dicotômico, provocado pelo antagonismo entre poemas cerebrais e líricos.

a ideia de alma ficaria em torno de uma relevância esvaecente, a qual primaria pela natureza instável de seu entendimento. podemos pensar a alma na interlocução com a palavra calma – relação possível numa mútua referência, em que ambas se solicitam reciprocamente –, no sentido de extravazar a discussão entre o corpo e o que está e é além dele. antes, contudo, se algo pudermos dizer a esse respeito, é que a copertença entre corpo e alma existiria em consonância com a corporeidade em amplo horizonte; logo, não seriam uma oposição, e sim um entranhamento existencial.

originada do verbo grego psýkhein, chegamos à conhecida tradução de alma por psiqué, que significa respiração, sopro vital ou simplesmente vida, conforme lemos no primeiro volume de Mitologia Grega, de Junito Brandão. desde a dinâmica do pensamento helênico, atribuiu-se amplamente à psiqué a ideia de alma. daí, de dentro dessa aproximação, é possível se avizinhar ao sentido de calma, segundo uma das acepções encontradas no dicionário Houaiss, a qual diz ser a calma a “cessação completa ou quase completa de ventos”. ora, se calma se refere à quietação, ao repouso, então fechamos um circuito em que ambas, alma e calma, se completam em seus dizeres. por uma analogia metafórica, e certa extensão de sentido, podemos cogitar que alma alude ao sopro de vida e calma, à cessação desse sopro; logo, uma e outra seriam ligadas num ciclo vital: a alma apontaria para o nascimento enquanto a calma, para a morte.

sabemos que vida e morte se dão mutuamente, pois vivemos enquanto morremos, de modo que a morte seria a culminância da vida. ao nos reportarmos para o início do enunciado, quando é feita a referência à obra cabralina e sua dureza encantada por um lirismo pensado e pensante, alma deixa de ser a mera referência aos estados emocionais da/do poeta e passa a figurar como movimentação do próprio poético, alçando voo em diálogo com seu sentido etimológico. alma como sopro que vitaliza a palavra no poema. que morre por ser calma. que dá ao poema o caráter da ambiguidade. morte e vida sendo um e o mesmo: uma concriação. talvez não seja à toa – e certamente não é – a invenção de um dos títulos mais famosos e mais potentemente trabalhados nesse lirismo pensado-pensante de João Cabral de Melo Neto: Morte e Vida Severina.

HJ: Literatura como arte e literatura como ciência. O labor e a inspiração. A contemplação e o prazer. O lúdico e o brinquedo.

FP: arte e ciência devem se repercutir. ambas se dão pelo apego ao improvável, ao inacessível como presença, ao que se mostra quando se encobre. o destino de uma pesquisa científica é tal qual o de uma investida literária, uma vez que se movem pela curiosidade e pela necessidade de sempre irem além de uma suposta conclusão. a diferença é que a literatura não tem uso prático. não se esgota numa tal exequibilidade.

labor e inspiração andam juntos, mas não gosto de pensar que devemos esperar por uma iluminação. acredito no trabalho contínuo, no suor da prática, da insistência. embora não me exima de momentos em que me sinta mais inspirado, com aquela ideia que me sequestra de súbito. costumo anotá-la exatamente da maneira que a mim chega, sem pensar em regras, formalidades, bom senso… nada. depois de algum tempo, volto ao fragmento e vejo se ainda tem força, a fim de desenvolvê-lo ou descartá-lo. em muitas das vezes, o poema chega inteiro. às vezes, em pedaços. alguns dão cria. outros, não. não há fórmulas para a criação, e sim experiência, insistência, escuta, diálogo, generosidade e alguma brutalidade.

ainda dentro do que mencionei acima, o que funciona é a insistência, o estudo, a leitura dos pares (e dos ímpares também!). há pouco tempo, vi uma postagem no facebook de um autor que dizia se isolar de leituras porque estava escrevendo um livro de contos (ou um romance, não me lembro…), e não queria que sua escrita fosse “contaminada”. sinceramente, considero ser esse um dos grandes equívocos que um autor pode cometer. comigo é exatamente o contrário. quando estou em processo de produção, leio outros autores para me sentir entusiasmado, incentivado, alimentado. é um tipo de inspiração que se dá pelo trabalho, pelo diálogo, mesmo que silenciosamente. não gosto de pensar que uma leitura me tirará do foco, até porque, se me considero um poeta excêntrico, no sentido de não me deter num único ponto de concentração e me abrir para as referências que me rodeiam, acho muito necessário me prover de outros parâmetros, os mais diferentes possíveis. nada será cópia, e mesmo que se faça uma citação exata, tal trecho já será outro, pois estará num contexto diferente, promovendo um diálogo distinto. um texto nunca é o mesmo quando lido por pessoas diversas. nessa dimensão, a contemplação e o prazer, assim como o lúdico e o brinquedo, se refazem continuamente enquanto a obra está em processo. operando.

é necessário brincar com as palavras, e essa aprendizagem devo muito ao Manoel de Barros, que, junto de outro poeta brasileiro – o Paulo Leminski –, foram a força motriz da minha tese de doutorado, defendida em 03 de dezembro de 2018, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, tese que se intitula Manoel de Barros e Paulo Leminski: A palavra como experiência do poético. palavra é brinquedo na mão de quem gramaticalmente não tem nem eira nem beira. o lúdico vem no adensamento material do que a/o poeta assimila e larga como poema. um estado sério de encantamento com as curvas da semântica. uma decantação do imprestável na fala da poesia em voz e eco de poemas nos poetas.

não poderia finalizar esta entrevista – que não deixa de ser um modo de se fazer brincações palavrais – sem citar o Manoel de Barros. deixo então um excerto, retirado de seu Livro sobre nada (1996): “Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”.

brinquemos!

***

Capa do livro "A HERMENÊUTICA DO MAR" de Fábio Pessanha
Capa do livro “A HERMENÊUTICA DO MAR” de Fábio Pessanha | Link da página do livro no Facebook: https://www.facebook.com/ahermeneuticadomar/

Três poemas de Fábio Pessanha

é como se eu pegasse tudo com
força e metesse goela adentro a
animosidade ao perder pedaços
de pele debaixo das minhas unhas.
voz sufocada entre os dedos, as marcas
no pescoço e bem de repente o peso
das estrelas no preto da visão.
o som bruto da carne ao chão. o frio
e a rigidez num ritmo em que a pele
se anula em secreções e se esvai na
secreta ação dos vermes. e eu queria
só dizer que te amo… triste engano…

(obs.: poema publicado em Escrita Droide)

**

a vontade é de engolir borboletas
despetalar suas asas com a boca e
sentir o gosto leve do seu voo
no estômago vontade ainda maior
é de beijar a lagarta por dentro
da sua quentura senti-la comer
as trincas dos meus lábios como se

fossem uma folha verde e nua quero
também desbravar o traçado da
mariposa com meus olhos ficar
cego do teu pó quero o corpo aberto
como uma ferida quase incurável
deixar o orvalho das horas molhar
cada milímetro da minha carne

ter os ossos do crânio se movendo
como se fosse um formigueiro em brasas
e abraçar cada estranho que cruzar
o meu caminho me entregar ao sol
desejando a chuva a fim de espalhar
todas as vidas que um dia viveram
em mim de hoje em diante prometo o

silêncio não perguntar como está
nem dizer bom dia boa tarde ou noite
como se criasse a maior mentira
do mundo e assim quem sabe me isentar
da culpa de ligar mais uma vez
sob o pretexto de que precisamos
novamente colorir absurdos

(obs.: poema publicado no site Literatura & Fechadura)

**

i
acho que te escrevi
um poema por causa
do teu livro. acho que
te fiz umas imagens,
talvez também um livro.

ii
a gente se descobre
nesses lugares longes
onde ninguém se busca
e quase nunca estamos.

(obs.: poema inédito)

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top