Fintei a morte?

0
587

Abro as cortinas da existência e o fedor do pânico polui a minha sala de estar. A casa está vazia, só eu, o silêncio e os meus livros. A família foi a Inhambane, esconder-se da praga, na nossa, sabe-se lá vã ou ilusória a crença de que há uma geografia para a pandemia.
Percorro o corredor que habitualmente é movimentado e sinto o medo a abraçar-me. Ele conforta-me, prometendo dias piores.

Perdi o controle das cortinas, o vento não me é favorável. O Iphone vibra, a notificação é: há mais um caso. O coração palpita mais rápido. E penso nos livros por publicar. O medo, no abraço, cheira a morte. O cheiro é desagradavelmente de podre, a morte, talvez deva ir ao hospital tratar do fígado, o seu hálito é sufocante. Nada posso dizê-la, estou a negociar. – Olha, estou certo que há cá algum engano. O mais provável é que tenha errado o endereço, não lhe convidei. -Ah, não? reage, friamente. Não, insisto.
Saca a lista de recolha e confirma o meu nome. Fita-me profundamente. Nossos olhares cruzam-se. A data, afirmo desesperadamente, não é essa. Posso até guiar-te aos outros que não reconheças as casa, mas saibas que és indesejada. Eu…vê só, há tantos gatos cá em casa, nenhum cruzou a porta do quarto. Tenho permanecido no meu leito, debruçando-me sobre a minha existência, as ausências de alguns eus mais responsáveis que o eu actualmente dominante. E é, no essencial, uma conversa sobre o futuro. De certeza que há um equívoco. Certa vez, conheci um senhor que assegurou-me conhecer alguém com o nome tal qual o meu. Desse, infelizmente, desconheço o endereço.
Indiferente, desdenhosa e medonha, liberta um riso de escárnio. – Não me comovo com chantagens emocionais, esta lista é infalível, garante.
Olhos no azulejo, a transpirar, a sentir frio, recordo-a dos vários casos de suicídio certo que foram travados a meio. A esses não conseguiste engolir, retruco.
Estupefacto com a minha insolência, esclarece: “não vim lhe fazer um convite!”. Senti o joelho esquerdo a vacilar, a cabeça a pesar, o corpo a ganhar leveza. Tomado por uma cólera, senti uma lágrima a percorrer-me o rosto. A perna secou, ensaiei um recuo, o corpo não obedeceu. Ia limpar o rosto, com a mão a escassos centímetros, lembrei que não podia, era um estratégia que ela tinha criado para eu ceder. A mão cheira álcool, cheira javel, cheira sabão.
Vejo que nas costas da morte, um lençol de um preto denso, preto mesmo como aquele tecido de luto, lentamente, cobre a minha estante de livros e discos, vindo na minha direcção. A morte goza o momento.
Um sabor amargo repentino no paladar. Em slide a memória traz-me um registo da minha mãe, minha irmã, minha namorada, meus amigos, alguns excertos escritos pelos meus autores favoritos. -Espera, imploro. Estala os dedos e num ápice a nuvem dissolve. No rádio notícia de última hora: mais dois mortos, vítimas do surto.
O alarme berra! O espelho do guarda roupa confirma que o meu corpo está inteiro. Com receio movo as pernas, as mãos, os braços, sempre com os olhos no espelho.
Da minha janela, vejo um pequeno jardim escondido atrás da copa que partilho com os vizinhos do quintal.

Artigo anteriorOnLive Festival a partir de hoje
Próximo artigoJosé Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem
É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here