Vencer a cama

E acontece todos os dias! O alarme, agressivo, violento, irritante, inoportuno, soa nos ouvidos, rasga os tímpanos, desperta a mente. São 5 horas, hora de se arrumar, tomar banho, escovar os dentes, pentear o cabelo, escolher a roupa possível e, uma vez mais, ir trabalhar.

E, então, chega a hora de vencer vários demónios, primeiro, o sono, o do tamanho do grão de açúcar, depois, a cama, o do tamanho Golias. Inconveniente é o trabalho, malditas necessidades, o patrão (e o chefe?), a pobreza, a fome, a existência, enfim… a vida.
E, de repente, uma gotícula de água arrebenta a cabeça e espalha-se em estilhaços, igual o copo que quebraste, ontem, na mesa do Bar, ali na esquina, quando lutavas com um dos teus inimigos mentais. Uma das partículas pousa na tua manta e nesse momento pegas nela, acaricias, amassas, embrulhas-te nela, suspiras, cobres-te do fio do cabelo até às unhas e, quando abres os olhos, mesmo dentro do cobertor, consegues contar as ondas das chapas de zinco do teu quarto.

E, nesse instante, o alarme soa pela segunda vez, já são 6 horas e 15 minutos. Não acreditas nesse pesadelo. Viras para o teu lado direito e notas que uma barata está ali fuçando a manga da tua camisa que usaste no dia anterior. Te perdes em pensamento. Imaginas ela sobrevoando o teu quarto, a sentir o cheiro do teu suor enquanto dormes, vês ela lutando contra a tampa da panela em busca de sobrevivência.
Teus olhos, ainda embaçados pelo sono, mal conseguem contar as patas da barata, e, te convences, ela tem seis, senão, como poderia se mover para qualquer canto, mesmo assegurando um grão de arroz com as duas de frente.
Mas, será que elas também sentem os mesmos pesadelos que nós, miseráveis Homens mortais? E o que a barata pensa quando lhe atiras com o chinelo? Quando ela passa fome porque tampaste as panelas? Quando a expulsa de casa e tem de dormir lá fora, com frio, com chuva, e, se calhar, correndo risco de ser assassinada por outros animais ferozes?
Será que há sequestros no mundo delas? Ou será que elas também se casam e, em algum momento, são obrigadas a colocar comida na mesa todos os dias? Será que têm contas a pagar, são responsáveis?
Começas a te responderes. Sem demoras, concluis, na pior das hipóteses, que as patas de frente são como o transporte público para elas, o My Love, e sofrem, também, acidentes de viação (ou de aviação?).
Na busca de mais respostas, já são 6 horas e 30 minutos. O alarme, insistente, toca, novamente. Voltas para a vida. E começa outro dilema:
-“Mas vale a pena ir trabalhar? Então quer dizer que terei de tomar banho, pentear o cabelo”,- mas não gostas nada disso. O pior, engomar a roupa, ser um arrumadinho, tal como o chefe gosta.
Outro devaneio te espreita a alma. E viajas. Te vês no autocarro, cheio, empilhado de gente, que fala de qualquer assunto, que sorri com o salário miserável, que faz graça dos seus problemas…a pisar o teu sapato limpo, a amassar a tua camisa, a te perfumarem com os sovacos, a te abraçar forte, a sussurrar no teu ouvido, a dar esperança para um mundo que se vai superando na sua forma de tornar a vida cada vez mais inútil.
Mal sabem que és importante, que os olha com pena, que escreves, és escritor, és jornalista, és advogado, engenheiro, que já leste bibliotecas, que tens muitos conhecimentos, desde Física, Biologia, História, Filosofia, que és uma enciclopédia e que só estás ali por puro acidente, ironia do destino, malditos testes divinos e que não vai demorar para estares no teu carro quando o melhor emprego chegar. Porque mereces, és diferenciado, és abençoado, filho de Deus, tens talento e, acima de tudo, tens fé.
Na casa de banho, enquanto te pões o sabão, lutas novamente contigo mesmo, dás muro, gritas no teu subconsciente e choras, porque venceste a cama, venceste o Golias, mas falta outro dilema, ir trabalhar, porque antes de fazer qualquer coisa, a tua mãe te mandou a conta da luz e da água, e o teu Enzo precisa de novas roupas. Está a crescer!
Nesse preciso momento, vences os demónios e cais de joelho, lacrimejas, porque amanhã o filme há-de se repetir…

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