GABAR MABOTE: A triste sina de um músico

Gabar Mabote já não está entre nós, perdeu a vida no último final de semana, vítima de doença prolongada. Para homenagear está figura incontornavel das artes moçambicanas a plataforma Mbenga Arte e reflexões vai publicar uma entrevista do jornalista Hélio Nguane, realizada em 2016, na qual, assume o pecado de te escolhido a música como seu ganha-pão. Confira…

ELE tem um dom, que lhe fez pisar palcos vistosos. As suas músicas conquistaram pessoas de vários estratos sociais. É inquestionável o seu trabalho artístico. A sua voz e as suas letras conquistaram mentes e corações, ao ponto de pelo sentimento que carregam. Artistas como Gabar, de quem falamos nesta peça, o país viu poucos. Mas o que é feito dele agora? Vive um drama: está doente e abandonado.

Encontrámos Gabar na casa de sua mãe, na rua 12 do bairro de Mahlazine. Cumprimentou-nos de forma eufórica. A sua voz rouca e melódica ecoava em cada saudação. À cada pausa num raciocínio repetia a frase: Nwana Bava! Hi mina nwana wa bava! (filho de Deus!/eu sou filho de Deus!, traduzido do changana, a sua língua materna).

Gabar Mabote actuou pela última vez num grande espectáculo em 2013, no Festival Mafalala. De lá para cá não mais teve convites para voltar aos palcos e está acometido de uma tuberculose, que lhe fustiga há cerca de dois anos. A doença não lhe derruba a vontade, ainda que lhe debilite o físico. “Ainda quero ser um artista, por isso não me deixo cair”, determina.

Para além da música e da escultura, a moda é outra das paixões deste homem a quem se reconhece como músico.

O que encontrámos em Gabar Mabote é um drama. Disfarça, porque esboça felicidade ao ver-se diante de uma equipa de jornalistas, mas é um homem debilitado por uma total incerteza quanto ao futuro. Diríamos que o futuro, para um homem da sua idade – quase 60 anos –, é o presente. O drama é tao grande que – confessa – “quando acordo nem sei o que comer”. É o lamento de quem se sente injustiçado pela vida. “Às vezes, oiço a minha música a tocar nas casas, as pessoas todas alegres, com as barrigas cheias a escutarem e eu aqui sem água nem açúcar para tomar um chá. Por vezes, escuto ‘Dana Ntsole’ (um dos seus temas) nos carros, alguns quase me atropelam, olham para mim com desprezo, sem saber que sou eu o autor da música”, lamentou num tom irónico, sorrindo para conter uma lágrima que quase caía.

Em 2000 e 2001, Gabar viveu um outro drama. Ressentido da separação da companheira com quem partilhava a vida fazia muito tempo, perdeu o gosto pela vida. O jornalista Manuel Meque, num artigo publicado no semanário “Domingo”, contou ter visto numa barraca de Malhazine um homem de mão estendida. “(…) Pareceu-nos um simples mendigo de sexta-feira. Reconhecemo-lo. Ele veio sentar-se ao nosso lado, abandonou a mesa quem não suportou o mau cheiro saído da roupa suja e do seu corpo. O músico começou a explicar que foi abandonado e que ninguém cuidava dele. Perdeu o pai em Novembro de 1990, vítima de uma emboscada armada em Pessene. Seus três filhos vivem no Zimpeto, casa que ele construiu, que a mãe (sua ex-companheira) é quem sabe deles”, explica Meque no “domingo” de 18 de Março de 2001.

Os desentendimentos com a ex-companheira, a perda da guarda dos filhos e da casa, mergulharam Gabar numa depressão. “Estava mal naquele tempo. Não era pessoa, não era nada”. Com sorte e ajuda de amigos e companheiros de estrada, Gabar superou o mau momento. Formou um agrupamento com amigos e apresentou-se em várias casas de pasto espalhados pela cidade e província de Maputo.

Actualmente, a vida de Gabar voltou ao mau que era: doente e abandonado pelos amigos, estende a mão por uma ajuda. “Há cerca de dois anos que enfrento uma tuberculose agressiva. Mas não é ela que mais me castiga. O que me entristece é a falta de comida, condições para viver, a falta de reconhecimento, o desprezo das pessoas e as saudades dos meus filhos”, desabafou.

Antes de cair na sua nova desgraça, Gabar actuava em algumas casas de pasto da cidade. “Só me exploravam. Cantava e davam-me migalhas e bebida. Os fãs pagavam para ver e aplaudiam-me, mas não tinha retorno disso porque para o meu bolso só entravam migalhas”.

O pecado de ESCOLHER A MÚSICA

Acorrentado pela pobreza extrema e pela doença, Gabar Mabote olha para trás e diz ter cometido um pecado na vida, o de ter escolhido a música para fazer a vida em Moçambique. “Nesta terra onde os músicos vivem na miséria escutamos as nossas músicas a passarem nas rádios e televisões e vemos os nossos pratos vazios. Não tenho nada, meu. Mais de trinta anos de carreira, nem uma casa, nem nada. Até minhas músicas tenho que comprar.”

Mais de três décadas de carreira, Gabar Mabote ainda não tem um álbum lançado oficialmente, mas as suas músicas, bastante populares, são tocadas nas rádios nacionais e não só. Os discos piratas circulam em todos os locais de venda destes materiais contrafeitos são vendidos “a preço de banana”, mas o artista nunca ganhou um centavo sequer.

“É triste o estágio actual da música. Eles levam estratos das nossas letras e melodias e dizem que estão a fazer música moçambicana. Não nos pagam nada pelas partes que levam da nossa música, fazem sucesso Às nossas custas e nós aqui, na miséria”, disparou revoltado.

Quem é Gabar Mabote?

No dia 10 de Agosto de 1957, Enoque Jaime Simbine ou simplesmente Gabar Mabote, viu o mundo pela primeira vez. Nasceu numa família numerosa, viveu os primeiros dias de sua vida no Bairro Luz Cabral e mudou-se depois para Malhazine, onde reside actualmente.

Aventurou-se na mecânica, mas um acidente de viação acabou com esse sonho. “Estava em risco de perder a minha perna esquerda, nem sei como não a perdi”, contou Gabar apontando o membro. O seu andar revela um homem manco, limitado na locomoção. Depois do acidente – foi atropelado – não mais pôde aventurar-se pela mecânica e acabou empregado numa empresa de tecidos da capital.

Mas esta fase também foi interrompida por outra baixa, em 1977: foi levado a um campo de reeducação no Niassa. Aprendeu lá a ser “machambeiro”, mas o que sobressaiu é a arte, pois havia no seio desses grupos actividades culturais. “Aprendi a fazer música”.

Em 1981 Gabar regressa a Maputo e sem emprego dedicou-se à música com mais intensidade.Em 1983 mostrou o seu poder em palco. “Participei do concurso ‘Canção de Minha Autoria’, realizado no palco Gil Vicente. Existiam vários concorrentes, deles destaca-se Tito Chichava. Recordo que Simeão Mazuze (Salimo Muhamed) era um dos membros do júri”.

Numa batalha sem tréguas, os músicos demostraram a sua força. Depois de horas de actuação o resultado foi anunciado. “Venci o concurso. Interpretei a música ‘Deixar Sofrer Rapaz’. O público entrou em delírio, foi algo marcante para mim”, narra, sorridente.

Depois da vitória, Gabar não parou, participou em vários concertos e animou festas. Em 1986, pisou pela primeira vez um estúdio de gravação, na rádio Moçambique (RM). “Senti-me em casa. Não parecia a minha primeira vez, estava inspirado, cantei de forma… nem sei como fiz aquilo”, expressa entre gaguejos de emoção.

A sua carreira estava em desenvolvimento. Tornou-se vocalista do Trio Gabar e popularizou-se, com as suas músicas a transformaram-se em verdadeiros hinos.

Na RM Gabar gravou 10 músicas. Tudo estava encaminhado para a edição das mesmas em álbum, mas por motivos que até hoje desconhece, o feito não materializou.

POETA INCONFORMADO

Durante a entrevista, Gabar Mabote pegou na sua guitarra e deixou os seus dedos roçarem-lhe as cordas. Aí o tempo para, pois quando ele canta não interpreta, vive a música.

A capacidade de improvisação é uma das marcas deste experiente músico. “Às vezes, vou a uma actuação com um repertorio já programado, mas chego lá com outra música, criada ao longo do percurso. Não escrevo as minhas letras no papel, crio e memorizo. É algo que Deus me deu”, constata sem modéstia.

Os temas de Gabar Mabote carregam um forte conteúdo social, romântico e melancólico. O amor, os comportamentos insanos, a luta por um Moçambique melhor, sobretudo na esfera social, a educação e os desvios à moral e às boas maneiras sempre foram temáticas apaixonantes para este artista, que em algumas músicas suas exibe um forte pendor de ironia.

“As minhas músicas reflectem o que eu vivo e o dia-a-dia dos moçambicanos”, expressa.

Várias músicas marcaram a sua carreira, delas podemos destacar: “Dana Ntsole”, “Vatsutsuma”, “Tlanga u Pimela”, “Amadespesa Ya Xitxuketa”, entre outras. Quem não recorda da música “Helenane”? “Ela viveu aqui! Quando partiu para a Suazilândia deixou-me quebrado, fiz a música pensando nela. Em alguns aspectos exagerei, como o facto de termos filhos, pois não os tivemos. Ela casou e formou família com outro, actualmente não está entre nós, morreu”.

Mas aquela não seria a primeira nem a última decepção do nosso músico.

escultor de mão cheia

Além de esculpir melodias musicas, o nosso interlocutor foi escultor. As obras de Gabar expressavam o que lhe vinha a alma. “Nos meus trabalhos retratava a sociedade, as pessoas, vários sentimentos: miséria, o sofrimento, a dor, principalmente das mulheres oprimidas”, disse gesticulando de forma lenta e expressiva.

Por causa da doença e dos valores (dinheiro), as “migalhas” que ganhava, foi obrigado a deixar a escultura. Mas as suas mãos ainda sentem saudades de esculpir.

“Eu ensinei a esculpir a muitos escultores que estão na praça. Meu irmão, Jaime Simbine é um dos meus produtos, ainda está na escultura. Já não pego na madeira, não tenho forças”, afirmou, respirou fundo e emendou com mais intensidade e sentimento:” Já não tenho forças para esculpir”.

Uma esperança

No meio ao caos, Gabar ainda tem os sonhos bem acesos. “Além das dez músicas gravadas na RM, acrescentei mais uma e pretendo lançar o meu primeiro álbum. Mas não isso não depende só de mim, preciso de um patrão, patrocínios para que eu possa realizar o meu sonho”, afirmou esperançoso.

Na esfera familiar, o nosso entrevistado espera recuperar o amor dos filhos. “Queria estar com os meus filhos, não escuta-los apenas pelo celular. Ainda tenho esperança de vê-los comigo”.

Depois de verem o estado em que Gabar se encontra numa matéria que rodou uma das televisões nacionais, um grupo de amigos e companheiros de estrada solidarizaram-se com o músico. No dia 30 deste mês vai decorrer um concerto de angariação de fundos para o tratamento de Gabar. No dia 13 de Fevereiro, se estiver recuperado, vai participar num concerto conjunto, com o músico João Bata.

Com as lágrimas quase a lhe fugirem no rosto e rogou: “espero que me ajudem. Ainda tenho esperança na minha recuperação.”

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