Texto de Miller A. Matine

Texto de Miller A. Matine

Eu não sou glutão. Nem sequer sou insensível à dor alheia, como certas pessoas insinuam ou pretendem pintar-me. Mas, a minha mãe, ela pode ser as duas coisas juntas. A maldita foi casar com um homem que tinha poderio. Porque o meu pai, além de doente, encontrava-se desempregado. Mais tarde casou com outro que também tinha vários bens. O coitado do meu pai não pôde suportar com as humilhações dela; e antecipou o seu fim com o veneno. Ou seria esse “antecipar” o seu fim?

Órfão e sem arrimo, virei arrumador de carga nos caminhos-de-ferro. Foi assim que consegui terminar o décimo ano de escolaridade, mas nem com isso consegui um emprego que preste. Tornei-me guarda presidiário, mas sucedeu que os prisioneiros resolveram escapulir-se exactamente na noite da minha vigília.

Por essa razão, tive processo disciplinar, fui encarcerado e, depois, demitido.

Um vizinho, que me viu crescer, arranjou-me um trabalho de guarda numa dessas lojas de indivíduos que só Deus sabe como e onde conseguem tanto dinheiro, mas também fui expulso, no terceiro dia, quando encontraram no meu bolso uma lâmina que eu havia levado para cortar a minha barba. “Só pode ser feitiço”, pensei, “ou seriam os meus antepassados a protestar?”. O facto era que, por não ganhar o que chegasse, nunca cheguei a fazer “makeya” [1] para a minha bênção.

Agora trabalho novamente numa loja como… Os senhores adivinharam. Sou guarda. Mas, já lá se vão quase oito meses que não aufiro o meu salário. Não preciso aqui de descrever o quanto isso é doloroso para qualquer ser que se preze humano. É por isso que, ultimamente, estou comendo mesmo “aquilo que me dá nojo”. E ainda assim, para conseguir “aquilo que me dá nojo”, tem sido “escopo e martelo”. Diriam vocês que estou fazendo um exagero até grosseiro. Ou que estou procurando angariar rios de lágrimas ou toneladas de piedade. Nem tanto, nem tanto. Estou apenas contando “as coisas como elas são”. Contudo, como disse há pouco, porque o patrão não me pagava o salário, eu engolia tudo o que me jogavam, sem desprezo. Isso é ser glutão?
Resposta: não.
Então, qual é o problema?

Bom, ultimamente tenho estado a ler muito, mas só ando a ler jornais; logo eu, alguém que odiava essas coisas de “notícias”. Ainda me lembro que, nas manhãs, quando o meu falecido pai colocava o ouvido ao seu rádio “Xirico”, eu o olhava com uma indiferença. “Este velho, pá.”, assim dizia eu, de mim para mim, abanando a cabeça que, por pouco, não saía do pescoço, “ao invés de escutar músicas, põe-se a ouvir patranhas de políticos. Que é que ele ganha com isto?”. Mas ali estava eu, tentando abafar os meus desejos insatisfeitos, lendo jornais. Foi ali que percebi perfeitamente as acções do falecido.

Saltou-me aos olhos o artigo intitulado Onde está o dinheiro do povo? Mas como eu não era “esse” povo, então mandei pra o diabo aquele artigo que dizia: A desorçamentação no Estado moçambicano, ou seja, a retirada de fundos do Orçamento para serem usados em contas desconhecidas e sem qualquer escrutínio, continua a ser um cancro no país, com milhões de Meticais a serem usados à revelia…

Como eu não era funcionário do aparelho do Esta- do, mas sim um guarda, logo, esse problema de desorçamentação e de crise económica não era um problema a ser resolvido por mim. E, mesmo que fosse… Como, com fome?

Saltei as páginas:

…Mais de sete mil pessoas assistiram em Maputo ao casamento de Zófimo e Valentina.

Sete mil palhaços assistiram e mais outros tantos nabos ficaram colados às suas telas de televisão para ver duas pessoas (mortais) a contrair matrimónio? Esta gente não tem o que fazer, não? Eu só posso ser um invejoso! “Namalhá, és Invejoso com ‘i’ maiúsculo”. Sou indiferente a essa euforia toda. Até aqueles que nunca saíram de Nampaco estão animadíssimos com esse casamento. Talvez pensem que são pessoas im- portantes ou bem informadas, ao se ocuparem desses assuntos. Sete mil e outros tantos tontos. Com certeza eu não faço parte dessa estatística. Cuspo na cara disso tudo, ah, eu cuspo! Que absurdo! Casamento? Como se não se tivesse assuntos dignos para notícia! Melhor ver o que tem na outra página.
…Comunica com profunda mágoa e consternação o falecimento do Dr. Miguel Ropwiitó Bane… O funeral realizar-se-á em…

“O malogrado é um Doutor? Deve, com certeza, ter uma família que respira!”, pensei eu, aliviado, de- pois de ter de engolir a irritadíssima palhaçada de casamento, “vale a pena atender ao funeral”.
Fui ao funeral com o único objectivo de aproveitar as refeições. Quando a sorte me acompanhasse, tornava-me chorador: deitava gotículas de lágrimas, para dar companhia aos familiares do malogrado que gritavam, pulavam e se roíam infinitamente por perderem o seu ente querido. Eu penso, (só penso, não tenho a certeza) que alguns deles exageravam nas lamentações, talvez para competir no afecto. Rebolavam tanto que até dava a impressão que eram eles que “tinham morrido”. “Por quê não devia ser este barrigudo a ir no lugar do Doutor?” — imagino eu que imaginavam assim a meu respeito. Enfim, senhores, “tendes que aceitar a coisa como ela é”. Deus chamou a um Doutor e não um homúnculo como eu. Ademais, todos nós iremos evaporar-nos daqui, tarde ou cedo. Dizei-me, amigos, pensar assim é ser insensível à dor alheia?
Respondam.
Então, que problema tenho eu com o problema que é vosso?

Glossário
[1]. Ritual em que se evocam os espíritos dos antepassados, geralmente, para fazer pedidos ou como gesto de gratidão.

***

Miller A. Matine é escritor de contos nascido em 1985 no distrito de Liúpo, província de Nampula, em Moçambique. Sua escrita é influenciada pelos aspectos sociais, culturais e económicos da sua terra, Nampula. É formado em Filosofia pela UP – Maputo e em Estudos de Educação pela Concordia University de Chicago.

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