PEÇA TEATRAL “INCÊNDIOS” A ténue distância entre amor e ódio

O MÚSICO brasileiro, Fióti, que canta “gente bonita é foto/gente boa é lembrança”, na EP, intitulada “Gente bonita”, atira, a determinado verso, que a diferença entre o remédio (amor) e o veneno (ódio) está na dose que se usar. No fim da peça teatral “Incêndios”, resta-nos esta imagem.

Nawal Marwan (Sufaida Moyane e Josefina Massango) é uma mulher, que carrega todos os vícios fratricidos de uma guerra, nesta obra escrita pelo libanês Wajdi Mouawad, encenada por Victor Oliveira, na versão, que esteve em exibição no Centro Cultural Franco-Moçambicano, em Maputo.

Superficialmente, podemos afirmar, a observar como a história de três horas, que se trata de um espectáculo de amor e ódio. Mas, respeitando o “Cogito, ergo sun” (“Penso, logo existo”), do filósofo francês René Descartes, torna-se claro que, de facto, estava certo o dramaturgo britânico William Shakespeare, quando concebeu que “há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar a nossa vã filosofia”.

A trama desenrola-se em volta de uma exigência que Nawal Marwan faz aos filhos gémeos, Joana (Rita Couto) e Simão (Bruno Huca), no seu testamento, condicionando o fim das suas cerimónias fúnebres, a entrega de cartas ao desconhecido irmão e ao pai (Horácio Guiamba).

Residentes no Canadá, onde a protagonista exilou-se, ambos são desafiados a regressar à terra natal da mãe. E, obediente, Joana embarca. O regresso conduz a um passado turbulento de uma mulher revolucionária, que lutou pela libertação do seu país durante a guerra civil, que assolou o Líbano entre 1978 e 1992.

Na viagem, ignorada por Simão, diversas linguagens tomam o palco para revelar o percurso de Nawal Marwan. Com recurso a flashback, similar a do cinema, a história é contada.

Ao longo da pesquisa, Joana cruza com gente que conheceu a bravura da progenitora. Um homem (Elliot Alex) gravou, em cassetes, os meses em que a senhora esteve em coma. A filha, na expectativa de uma resposta, ouvia os áudios, que apenas captam a respiração da falecida. Naquele silêncio, acredita, pode haver alguma revelação.

Com Joana sentada num extremo do palco, compenetrada no que (não) ouve, sugerindo que Nawal Marwan, mergulhada no sono profundo rememorava o seu percurso quando se fazia aquele registo, Sufaida Moyane entra em cena a representar a juventude daquela mulher, à procura do filho perdido na guerra.

Enfrentando os perigos do conflito que, sem piedade, ceifava vidas, a mulher não cessou. No fundo do palco, numa tela gigante, o fotógrafo moçambicano David Aguacheiro animava o cenário com efeitos em forma de vídeo, que tinham o condão de contextualizar o ambiente em que tudo decorria.

Com uma notável entrega ao personagem, Sufaida Moyane transporta a audiência para a carga de angústia, que perturbava àquela mãe desesperada. É nessa, que Sawda (Eunice Mandlate Chaúque), surge a traduzir a dor do âmago do desespero.

“Me leva contigo, ensina-me a ler e  escrever”, suplica, prometendo, em contrapartida, ser-lhe fiel. O seu apelo é comovente, é como se sentíssemos  a esperança no último fio. “Se eu fico aqui eles me matam”, atira.

Ambas seguem o seu percurso de uma vida adversa, até Sawda assassinar um líder da milícia protegida pelos militares. A consequência é uma chacina sobre os refugiados, grupo ao qual pertenciam.

Nawal Marwan assume a culpa e acaba presa, com o número 72. Com fama de “Mulher que canta”, que era o talento da verdadeira criminosa, acaba nos calabouços, estuprada, como o resto das prisioneiras, pelo pai dos gémeos, que ocupa posição de chefia no conflito.

Através da música criada ao longo das seis semanas de ensaio, inspirada no próprio enredo por Nandel Maguni envolve o auditório na atmosfera desta peça, que cruza gerações.

Ana Magaia, que há muito não víamos em palco, empresta a trama uma interpretação que, diga-se, que nos aproxima das nuances do cartaz que dá voz. O seu papel é da voz que se ouve, quando Joana e Simão lê as cartas deixadas por Nawal Marwan.

Prestando-se a diversos papéis, mas sempre a indicar o caminho para Joana chegar à verdade, Rogério Manjate recorda que temos de emprestar um certo humor a esta existência, através de falas, semblantes e gestos.

Alberto Mateus Magassela é outro nome que há muito não víamos em palco e, num papel discreto, regressa, neste “Incêndios”.

O figurino foi feito por Isis Mbanga, Venâncio Calisto fez a assistência de encenação e a luz esteve na responsabilidade de Caldino Perema.

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top