Um Pedro Platónico

“(…) afinal [o livro] não é apenas sobre o diário meio inócuo que se suspeitou, mas sim sobre o percurso penoso (…) que foi realizado por um número não negligenciável de compatriotas nossos no processo de serem moçambicanos”, lê-se na nota introdutória do livro “Um Rapaz Tranquilo Memórias Imaginadas”, assinada por Luís Bernardo Honwana.

Recorremos às palavras do autor da “Velha Casa de Madeira e Zinco” para iniciarmos este percurso pela obra do engenheiro Álvaro Carmo Vaz, cujo sujeito poético constrói uma narrativa que nos coloca no interior da comunidade branca portuguesa, de classe média, que habitava Lourenço Marques na década 60.

É através de Pedro, engenheiro que voluntariamente naturalizou-se moçambicano, quando os seus próximos, em 75 e na década seguinte, rumaram a Portugal, que entramos nas memórias que este livro se propõe a desfiar. Ao atribuir a sua profissão ao protagonista, o autor dá uma versão de si a narrativa – indo de acordo com as memórias que o título carrega. Eugénio Lisboa repara que este exercício é, muitas vezes, uma alternativa às vozes que o artista não assume na primeira pessoa.

A obra que vai até 2016 traz à superfície o estilo de vida de parte da sociedade lusitana na capital do país, passando pelos ecos da luta de libertação nacional, a euforia da independência, o ídolo Samora Machel, até às consequências do capitalismo – que, pelo que se depreende, entrou de forma abrupta em Moçambique.    

Espaços como o Cristal, Princesa e Cinema Scala fazem as fotografias de lugares que foram se transformando ao ritmo que Lourenço Marques ia ficando para trás, enquanto Maputo erguia-se. É notável o trabalho no detalhe que dá precisão às imagens propostas, evidentes, por exemplo, nos nomes das avenidas do período anterior e pós-independência.

Do interior de “xilunguine”, do outro lado da avenida pela qual Noémia de Sousa chora “let my people go”, descortina-se, nesta obra, a forma como as famílias foram recebendo o anúncio de novos ventos. Entre cepticismo e euforia, o pai de Guida, o amor de Pedro, outra filha de portugueses nascida em solo pátrio, acha justa a reivindicação de independência dos moçambicanos.

Na casa do então futuro engenheiro o cenário é outro – como descreve -, os pais, alienados pela ideologia salazarista, entendiam o movimento independentista como um grupo de terroristas.

É, com efeito, a posição da família da mulher com quem casou-se décadas mais tarde, não obstante a separação de ambos pelo facto dele ter preferido Moçambique e a causa da revolução, que determina a sua forma de ver o mundo e define as suas opções na fase adulta. Aliás, diga-se, Pedro até transcendeu a acepção e assumiu o país como a sua causa de vida. 

No pós-independência, o protagonista encarna a legião de samoristas que, por tabela, aderiu aos princípios marxistas, numa linha que indica mais as perpectivas de Vladimir Lenin e Leon Trótski, pensadores maiores da Revolução Russa, que instalou a primeira nação socialista do mundo. Não obstante, não lhe passou despercebida a loja do povo, enquanto os privilegiados iam às lojas francas.

O desenrolar dos acontecimentos, com a morte de Samora Machel frustra-o e vai partilhando a indignação com os seus colegas da Universidade Eduardo Mondlane, onde é um professor comprometido, até porque por vários anos adiou o doutoramento para responder a falta de quadros para suportar a instituição com a fuga dos antigos docentes. É evidente a degradação de valores morais, as crescentes assimetrias sociais que se iam revelando com o passar do tempo. A situação agrava-se com a abertura ao capitalismo, que chega vestido de bom rapaz, com a designação de “mercado livre”.

Nesta colecção de memórias imaginadas – como são todas – o ânimo, o entusiasmo que tomam Pedro e o seu grupo de amigos, entre eles moçambicanos negros e brancos, vai evoluindo, seguindo o mesmo gráfico desenhado por Francisco Noa, quando ilustra o percurso entre a utopia e a distopia em José Craveirinha, através dos poemas “Sia Vuma” e “As Saborosas Tangerinas de Inhambane”.

Numa obra de arte que percorre o caminho do realismo, o narrador alterna ambos: a realidade e a ficção e gera uma confusão em relação às fronteiras de ambas.

É uma narrativa linear que retrata uma visão de quem sempre esteve numa situação privilegiada e nem por isso alheio ao que decorria a sua volta.

Escaparam, entretanto, ao narrador as feições de Pedro. O seu semblante não encontrou reflexo na descrição. Por outro lado, há demasiado platonismo no protagonista, que em momento algum tropeça nas trivialidades humanas, como é quase imaculado.

Os diálogos, que poderiam ser uma oportunidade para questionamentos sobre esse passado retratado, acontecem num plano meramente de informação que não possibilita transcender a superficialidade.

O casal que anima este enredo cultiva-se através de literatura diversa, cinema, música, sobretudo. Parte da narrativa se desenvolve através de cartas escritas pelo engenheiro no período em que a amada esteve em Lisboa, depois em Londres, a fazer o doutoramento e, mais tarde, novamente na capital portuguesa, casada com um janota.

A prosa é alimentada, nos momentos de avanço, por fragmentos de notícias do país e do mundo que ajudam a posicionar os acontecimentos no tempo. Aliás, a preocupação com essa questão cronológica está presente nos capítulos que são nomeados por anos e títulos de músicas da febre dos anos 60, The Beatles, a rapaziada de Liverpool.

“Em arte, bem vê, não há a primeira pessoa”, disse Oscar Wild, numa conversa com André Gide. Eugénio Lisboa usa este exemplo para explicar que em arte o “eu” é plural. É um “eu” altruísta que se dá ao mundo para ser vários. É esta a vontade de Álvaro Carmo Vaz, como aliás frisou no dia do lançamento do livro, que sai sob chancela da Marimbique.

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