Melhor do que o silêncio só João

INSENSATEZ é acreditar que algum dia a saudade terá fim. É em vão questionar-me se é verdade que a tristeza não tem fim. De nada vale, João Gilberto. A eterna estúpida, a morte, veio te arrancar deste mundo que vieste tornar mais belo. Talvez não teríamos conhecido a “Garota de Ipanema”, se não tivesses buscado a sonoridade que habitava no escuro do silêncio que deste luz.

Oh! João, tu que sempre te apresentavas de fato e gravata nos concertos que nunca vi. Tu que não te deixavas fotografar. Tu que foste avesso à glorificação moldada pela presença na media. Diz-me, se é nessa sombra em que viveste, de onde a tua música brotava?

Tu, a tua guitarra e a tua voz inventaram o mundo, outro. Caetano Veloso, o teu Caetas, não teria cantado como cantou “Livros”, se não fosses tu João. Como? Te foste? Logo tu? Nem a Doralice te tinha derrubado apesar do ciclone que devastou o teu coração.

Ainda me custa acreditar que obedeceste ao Cale-se, logo tu que abriste a porta para a construção daquele casarão, escuro, onde Chico Buarque não sabe ao certo se conheceu uma moça bonita.

Até aqui só te atiro culpas e trato-te por tu, porque poucos chegaram tão íntimo como tu, com os teus sussurros, avessos ao humano barulho. Teu silêncio não queria ser amarfanhado, tecido engomado, liso. Te atiro as culpas para não aceitar as minhas.

Sabe, oh! João, há dias o Pretileiro escreveu um texto lindo, tão sofrido, a pedir que lhe déssemos flores enquanto vivo. E eu nunca te escrevi, vivo, mesmo sabendo que não chegaria a ti, o Olimpo é distante, mas a minha alma carregaria com menos dor esse peso. (Ainda devo as flores ao Pretileiro).

Hesitei escrever-te uma carta, ainda que para guardar na gaveta, a perguntar-te se tinhas consciência de que me acompanhavas para casa. Que devolvias o chalambiano, de Maputo para Inhambane, ao soprar que a cada palmeira há uma mulher e que uma delas é a sua namorada. Era como se, ao ouvir-te, eu tivesse descoberto um porta-voz que me conhece desde sempre.

Tu bem reparaste o esplendor do palmo de lua e a conquista da luz, no avarandar do amanhecer, na praia. Baiano, me atiravas para o mar, esse infinito guardião de todas as solidões. Ele que nos lava a alma.

João Gilberto, quando olhas para o teu percurso, apesar de troços falhados, não te parece que as tais ironias do destino (lamento, também não gosto de clichês), desde sempre nos disseram quem és? Teu primeiro grupo significativo chamar-se “Garotos da Lua” não parece obra do acaso. Não, porque Salvador é só onde ouviu-se o teu primeiro choro, mas tu só podias vir doutra galáxia. Sim, ou então me explica como é que se mudam os tempos! Sim, me explica como é que nesse teu minimalismo simplificaste o Samba?

Na carta que nunca te escrevi, diria que admiro essa vossa capacidade, de vocês os génios, fazer da arte a verdade da existência humana. Sabes, claro, que a obra só é perene, se verdadeiramente humana, se toca e perturba o âmago. Tu inventaste a guitarra da “Bossa Nova”, a “Bossa Nova”! Atravessando dias decadentes, do fracasso de não se integrar no estabelecido. A tristeza, o sofrimento, disse-me Valter Hugo Mãe é um lugar, momento poético, tu sabias disso, talvez o ensinaste.

Sou devoto à essa incessante busca de singularidade que procuraste, esse canto naturalista que quer se aproximar da fala. E não estiveste longe, percebi na Mariana, no Rio de Janeiro, essa sonoridade na fala, é um pedaço do Brasil que celebraste naquele concerto em Madrid, justamente em Julho de 1985. 

Não é de espantar que alguns dos teus apreciadores, os especialistas, te comparem a Mário Reis, o dos anos 30, ou a Carmen Miranda, pela capacidade de cantar sílaba-a-sílaba com precisão milimétrica.

João Gilberto, tu que és um dos maiores protagonistas da modernidade – não só brasileira -, confesso-te, guardo comigo a dúvida sobre como é que tu concebias os objectos com relevo, textura palpáveis na tua imperturbável interpretação.

Excêntrico, é como te descrevem alguns, eu diria génio. Tu és daqueles que nunca pertenceram a este plano. É que, pela tua grandeza como entender a tua simplicidade, a tua humildade? Não sai da memória, tu a perguntares a dado passo das tuas performances: “vocês ainda me aguentam?” – Como não? Como?

Opto nesta minha tentativa de te celebrar, tu que denunciaste a algumas ilusões (“a gente trabalha, o ano inteiro para tudo se acabar na quarta-feira – o carnaval, a maior festa do mundo, é só isso?”), por seguir a opção do poeta José Craveirinha, no texto fúnebre que celebra a vida do seu confrade, o fotógrafo Ricardo Rangel, e não falar da tua técnica musical para não reduzi-la.

Empresto-me ainda, entre estes parágrafos que poderia ter escrito enquanto vivias, da pena do autor de “Cela 1” para reconhecer que, como o amigo do poeta, deste o verso do inverso da vida (um desdém à saudade, como nos ensinaste).

Oh! João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira (1931-2019), deixo o que poderia ser dito na voz do teu Caetas, que sentenciou: melhor do que silêncio, só João.

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