Chinelo de cinquenta meticais nos pés sujos de tanta poeira colhida nos becos areosos dos subúrbios da cidade de Inhambane e um trompete perfurava a audição de um grupo de cinco rapazes, no qual apenas um era proprietário do único telemóvel que reproduzia música. Foi assim que começou a minha relação com o jazz, com “Stimela” de Hugh Masekela.
O “pai do jazz-sul africano”, como alguns consideram – atendendo e considerando que acabou sendo a estrela mais cintilante da primeira banda significativa do género naquele país, Epistles, que, igualmente, integrou o pianista Abdullah Ibrahim -, me convidou a sua locomotiva.
O sexteto de que fez parte na sua fase inicial apostava num bebop, que fundia a música tradicional sul-africana com o vocabulário do jazz-pop dos Estados Unidos de América.
Em meio aos seus vagões, de calção roto no rabo, como até depois coincidentemente descreveu-me Waldemar Bastos, percebi que o “maquinista”, na verdade era um Griot na África sub-sahariana. Esta constatação é simples de justificar, ao observar que Masekela contava as dores do seu povo, golpes humilhantes desferidos pelo regime do apartheid, que os subjugava e tentava – em vão, como hoje se vê – reduzir os sul-africanos a nada.
Sem nenhum critério, apenas embalado pela harmonia diferente, cheia de energia, segui a viagem. Nessa altura se quer sabia que o trompetista, com o tema “Grazing in the Grass“, atingiu sucesso estrondoso em 1968 nos Estados Unidos de América, com o qual atingiu a fasquia de 18º lugar na Billboard.
…e a dado momento, nesse troço de descobertas, o maquinista deixou-me a cuidados na estação “jimmydludliana”, que, por sua vez, empurrou-me para referências como John Leslie Wes Montgomery, Charlie Christian… Por lá fiquei-me por algum tempo.
Quando Hugh Masekela voltou para buscar-me, eram as lágrimas das crianças, estudantes, que a 16 de Junho de 1976 foram as ruas para reivindicar igualdade de tratamento nas escolas, que jorravam na composição de “Soweto Blues”.
Seguindo este rumo, a bordo, cruzo-me com Louis Armstrong, que em 1954 ofereceu um trompete ao autor de “Chileshe”, a explicar-me que, não obstante o caos que emanava nas reivindicações de Ramopolo Hugh Masekela, há beleza no mundo. O norte-americano ainda teve a simpatia de indicar o endereço, ao descrever que a mesma reside nas coisas simples, como bem claro fica naquele seu eterno “What a wonderfull world”.
Os mimos de quem desde cedo acreditou que o rapaz nascido a 4 de abril de 1939, na cidade de mineira de carvão, Witbank, África do Sul, não cessou, ao encantar-me com a declaração de amor feita na curta composição de “La vie en rose” – título que levou de empréstimo da diva francesa Edith Piaf.
A bagagem que se fazia transportar na locomotiva de Hugh Masekela era musicalmente rica de referências, que não me causou espanto descobrir que uma das suas maiores referências foi o trompetista de Carolina, Dizzy Gillespie.
O bilhete de passagem que me foi oferecido pelo ex-marido da lendária intérprete de “A luta continua” e a icónica música “Pata pata”, Miriam Makeba, permitiu descortinar os marcos do etíope Mulatu Astatke (tido como o pai do Ethio-jazz), o multi-instrumentista Fela Kuti, e uma nata de “gajos” que fizeram do jazz jazz.
No “Sitimela”, o que nunca faltou foi a sede de liberdade, de dignidade, de exaltação a preservação de valores africanos. Não há dúvida que Masekela era um humano na verdadeira acepção do termo. Num sentido que transcende as suas obras musicais, ao, no seu discurso e modo de vida estar sempre patente essa preocupação com a humanidade.
Depois de ter batido de frente com o regime opressor do apartheid, o trompetista em temas como “Mandela (Bring Him Back)”, continuou a sua luta, ao vilipendiar a ocidentalização dos hábitos e costumes que encontrou nas pessoas do seu país quando regressou dos 30 anos de exílio nos EUA.
O filho de Thomas Selema Masekela, um inspector de saúde e notável escultor – conforme o New York Times – e de Pauline Bowers Masekela, assistente social, sempre mobilou os vagões da sua locomotiva com os valores do seu povo, dai que não espanta que mesmo depois de vários e longos anos sem colocar os pés na África do Sul manteve o seu forte sotaque intacto.
Leia a descrição de uma performance de Hugh Masekela de 1989 neste link
Review/Jazz; From South Africa, a Sunny Musical Mix
A morte, infalível que é, para provar a falência dos nossos corpos levou Hugh Masekela, a 23 de janeiro de 2018. Mas a sua viagem não parou, a locomotiva não encalhou.
Ainda agora, que termino este texto, ouço o ranger de um novo arranque, na certeza de que, na verdade, uma nova viagem começou, rumo a consagração.
Acredito que pequenos gestos podem mudar o mundo. Encontrei no Jornalismo a possibilidade de reproduzir histórias inspiradoras. Passei pela rádio, prestei assessoria de imprensa a artistas e iniciativas. Colaborei em diversas página culturais do país. Actualmente sou repórter do jornal Notícias. A escrita é a minha arma”.