“AS VISITAS DO DR. VALDEZ”: A trágica consciência da ilusão

Pretilerio Matsinhe

As Visitas do Dr. Valdez”, obra do escritor João Paulo Borges Coelho, foi adaptada para o teatro por Venâncio Calisto, estudante de Teatro da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), e apresentada há dias no teatro avenida, a contar para o seu exame público na disciplina de Encenação.

Estamos nos anos 1960-70, tempos de guerra, de movimentações, de agitações de traumas e de refugiados. O Exército da Frelimo está em acção para libertar os moçambicanos da opressão colonial.

No meio disso, uma família nobre abandona a sua zona de origem, Cabo Delgado, que já estava sob fogo cruzado e vai se instalar na Ponta Gêa, cidade da Beira. Sá Amélia e Sá Caetana, duas velhas protagonistas, levam à nova cidade Vicente, jovem servo.

No palco, os três actores encarnam várias personagens, com momentos de pausa e de dança, acompanhados pela luz que vai baixando de intensidade nos momentos de tensão, no clímax.

fotooo.pngAs canções de libertação, através da rádio, davam um brilho ao espectáculo. Vinham do mato, entoadas pelos guerrilheiros da Frelimo, anunciando novas ordens, novas formas de estar e de se comportar contra o colonialismo. Isso perturbava a presença colonial.

Sá Amélia, numa cadeira de rodas, e Sá Caetana sentem um desespero, talvez por terem-se habituado ao luxo e nada poderem fazer para mudar o presente e nem perspectivar o futuro. Resolvem jogar, como o fazem os actores. Vestem a consciente da ilusão para concertar as suas vidas “desajustadas”.

Sá Caetana tinha dívidas com a sua irmã, algumas reparáveis, outras não. Tinha-lhe roubado alguns sonhos, a começar pela sua filha, que havia-lhe transferido para viver em Portugal. Tinha inveja da irmã, a Sá Amélia, por esta ter-se casado com um homem rico.

Nesse jogo, que se realiza entre a consciência da ilusão e as mentiras do presente, Sá Caetana resolve inventar o Dr. Valdez para fugir da realidade, das responsabilidades, do peso da consciência. Para isso, trama a mentira com o Vicente, na ilusão que a irmã desconhecia a verdade. Também tinha outros planos, um deles era fazer com que a irmã se ocupasse das reviravoltas do passado, lembrando-se do seu amor para com Dr. Valdez.

As visitas começaram, Amélia sabia, mas fingia desconhecer o caso para fazer os dias passarem. A peça trás, também, uma reflexão sobre as relações entre empregador – trabalhador. Sá Caetana rebela-se, decide acabar com a farsa ao sentir as reclamações da irmã no empregado, que encarnava a figura do já falecido médico.

Vicente volta a ser obrigado a encarnar o papel do marido falecido da Caetana. O jovem cansa-se de interpretar mais papéis, rebela-se e conta que quer viver a sua vida, realizar seus sonhos, talvez fruto da visão independentista espalhada pela Frelimo durante a guerra.

Foram personagens e intérpretes: Sá Amélia (Eunice Mandlate); Sá Caetana (Sufaida Moiane); Vicente (Dr. Valdes); e Njungo Araújo (Samuel Nhamatate), dirigidos por Venâncio Calisto.

Venâncio explicou que a escolha justifica-se pelo facto de o livro retratar “o período da ruína de um império e o nascer de um país. É uma metáfora para o tempo que atravessamos, de instabilidade, uma incerteza entre o presente e o futuro”, disse.

A sugestão do livro foi do seu professor de dramaturgia. “Há um jogo de ilusão no livro muito interessante, por isso preferimos trabalhar nisso”, num jogo de criação bastante árduo, no qual, tanto os actores, assim como o encenador tiveram de mergulhar na obra de forma profunda. “Até perdi o livro no ‘chapa'”, disse Venâncio, esboçando um sorriso.

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