SERVENTE I

Ser? Deixei de ser faz tempo. Só me resta o vente que de nada me serve. Desperto todos os dias as três da manhã, ainda na cama, viro para o lado e contemplo da ausência do meu esposo. Ele trabalha como guarda, quase nunca está e por isso tenho que guardar meus desejos.

É hora de levantar, Marracuene é onde moro e trabalho no hospital Central de Maputo, no centro da cidade.

Faço o banho, preparo algo para comer e deixo na mesa, para as crianças, o dinheiro de chapa para escola.

Os mais apressados no hospital, pagam-me o subsídio de apoio a comunidade: quer entrar logo, sem passar da bicha, eu ajudo e ele paga.

As ruas são escuras, becos estreitos sem vivalma. Só eu, apressada. Chego ao serviço já cansada. Chegar aqui é um trabalho.

Depois de cumprimentar as colegas, aquelas víboras fofoqueiras, ponho-me a circular.

Vejo nas visitas olhares vazios de esperança. Olhos vermelhos de gente que contém as lágrimas que começam dos pés, sobem o corpo todo, mas não podem sair, os doutores dizem que faz mal ao doente.

Outros nem força têm, alma está na cama com o doente. Emprestam seus anjos ao querido. Quando eu era mais nova, lá na vila, antes dos mabandidos chegarem eu vivia na Missão. Minha família não podia a minha educação. Foi lá onde aprendi a falar português.

A doutora, branca, era minha amiga e me ensinou a ler e a escrever. Eu queria ser como ela quando crescesse, disse isso para ela. Prometeu me levar à Cuba, mas depois da independência, com a guerra, fugi da vila.

Morri quando aquele sonho foi. Não tinha mais como encontrar a doutora. Vim para a cidade, consegui emprego no hospital. Servente.

No princípio era mágico, cuidava dos doentes, meu sonho, ressuscitei. Ajudava os doutores.

Mas aqui era corrido, sangue nos corredores, vindos da guerra. Morria gente enquanto eu empurrava a maca, aí eu morria junto. Até que isso deixou de me matar.

Deixou de me matar por que eu já sabia, hospital não é saúde. É onde eu ganho a vida. E perco vida.

lEONEL2

Acredito que pequenos gestos podem mudar o mundo. Encontrei no Jornalismo a possibilidade de reproduzir histórias inspiradoras. Passei pela rádio, prestei assessoria de imprensa a artistas e iniciativas. Colaborei em diversas página culturais do país. Actualmente sou repórter do jornal Notícias. A escrita é a minha arma”.

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