MANKEW MAHUMANA: Arte sem política é um prato sem sal

O CHEIRO à tinta é forte! Perfuma a sala de estar, repleta de quadros, alguns deles ainda não terminados, entre tantos outros que dão cor ao espaço que Mankew Mahumana transformou em “atelier”, na sua residência, no bairro de Xipamanine, um dos subúrbios da cosmopolita Maputo. É lá onde, em jeito de tese, observou: “Arte sem política é um prato sem sal”.

De estatura média, cabelo crespo, tal e qual representa nas suas pinturas, camisa de capulana e óculos de vista, Mankew abriu a porta entusiasmado com a visita. A sua fácil locomoção desmente os oitenta anos que celebra este mês. O semblante mantém-se jovial.

“Algumas obras ainda estão por terminar e outras já estão aqui há muito tempo”, explicou, depois de ter apresentado os seus quadros, enquanto se acomodava para sentar-se e recontar a sua história. Aí vai:

Nasceu em Matalana, no distrito de Marracuene, província de Maputo. Cresceu com outros artistas que se destacam na geração fundadora das artes plásticas nacionais modernas, entre eles Malangatana, Oblino Magaia ou Noel Langa (este vem de Gaza).

Desde tenra idade, no seu vilarejo, os miúdos aprendiam as danças, canções, pinturas e diversas técnicas de produção de artesanato. Estes exercícios eram parte da educação e, sobretudo, da transmissão de valores culturais dos mais velhos para a pequenada.

“Eu sei dançar xigubo, marrabenta e toco gaita”, exibiu o artista plástico, tentando explicar o contexto no qual cresceu.

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Mankew. Fotografia de Isaías Sitóe

Mankew já ia com uma vantagem comparativa. Mahumana, seu pai, produzia pilões, enxadas, para além de construir palhotas. Este facto já o dotava de algum conhecimento em relação à madeira, por exemplo.

“Aquele sangue atingiu-me e infectou-me de arte”, disse, explicando a origem da sua veia artística. Observa-se, neste sentido, que o artista nasceu de forma desinteressada. Mas, admita-se, o ambiente e as actividades do pai foram o húmus para desabrochar.

Na verdade, pretendia-se moldar um homem que estivesse à altura de responder a questões domésticas.

O seu pai, recorda, tendo já identificado as habilidades do seu progenitor, mandava-o pintar, já aos 10 anos de idade, armários das casas onde trabalhava.

À semelhança dos seus vizinhos e de parte dos jovens dos seus tempos, em 1951 migrou para África do Sul. Era o seu “primeiro Djoni”, ou seja, a sua primeira aventura à “prometida terra do rand”, que emanava leite, mel e fel.

Entrada definitiva

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Obras do Mankew

Voltou a pendurar as suas peças de roupa no cabide, em Maputo, definitivamente, em 1959. Não mais voltou à vizinha África do Sul.

O pincel já era parte do seu corpo. Um veículo de expressão. E foi ganhando a vida com a pintura de imóveis. Recordou-se de ter feito a pintura de vários edifícios da igreja Assembleia de Deus.

Não sendo suficiente para o seu sustento, também fazia carimbos. “Parei por temer os colonos, eles não queriam saber de moçambicanos, sobretudo não assimilados, a fazer esse trabalho”, explicou.

 Na década de 60, Mankew volta a cruzar-se com Malangatana. Reconheceu, com um sorriso nos lábios, que o mesmo tinha avançado e evoluído muito desde a última vez que tinham estado juntos, ainda na infância e adolescência. E Malangatana, que já frequentava o Núcleo de Arte, incentiva-o a não desistir das artes plásticas.

“Na época não aceitavam a entrada de negros no Núcleo de Arte, mas ele já estava lá. Era o único e tinha crescido muito”, reviveu Mankew Mahumana.

A partir de 1968 passa a dedicar-se, exclusivamente, às artes. Tal decisão resultou do convite de uma norte-americana, enviada das Nações Unidas, que apenas se recorda do primeiro nome, Marta.

Ela era uma antropóloga que tinha ido a Matalane para estudar os hábitos e costumes da população. Ao deparar-se com as pinturas de Mankew encantou-se e comprometeu-se a vendê-las.

Em 1971 participa na sua primeira exposição colectiva, na Associação Africana, no Alto Maé, que se dedicava à divulgação de arte africana e que há muito conquistava o seu espaço e o seu destaque no “mainstream” mundial, sobretudo ocidental. Nesta mostra colectiva vendeu os três quadros que trazia.

Uma vez mais, em 1973, voltou a abandonar Matalane, mas desta vez mudou-se para então Lourenço Marques (actual cidade Maputo).

O político que sensibilizava

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“Na colectiva (de 1971) apareceu uma menina a procurar perceber o que eu pintava. Eu respondi que retratava o sofrimento do meu povo. Quando ela saiu, os guardas vieram dizer-me que a resposta que dei safou-me, porque se tivesse dito, por exemplo, que pinto o comportamento dos colonos, teria sido preso. Afinal, ela era da famigerada PIDE”, narrou Mankew.

Já nessa altura, as suas obras eram um manifesto de reivindicação, de convite à emancipação do homem para a causa da independência do país. Até porque, na sua opinião, as artes são alimentadas por ideologias.

“A arte sem política é um prato sem sal”, opinou Mankew Mahumana, antes de assumir-se como “um político que estava com rancor dos colonialistas e sede de liberdade. Liberdade para o povo. Eu era uma das vozes da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). E as minhas obras expressavam o meu sentimento de revolta contra a tirania e dominação colonial portuguesa”.

Juntamente com o poeta José Craveirinha, o artista plástico Malangatana, fez parte de uma célula que consciencializava jovens para a luta de libertação nacional. Nas reuniões planeavam as viagens de fuga para a Tanzania. Pelo que conta, cabia a cada membro convidar outros jovens, mas sem que precisasse de dizer aos demais, por uma questão de segurança.

“Graças a Deus, eu escapei à prisão. Tive muita sorte”, reconheceu, recordando que o seu nome e os dos seus colegas, que até acabaram nas malhas das autoridades, estava na “lista negra” da PIDE. Foi essa razão que os arrancou da escola. Ao saberem que estavam a ser perseguidos desistiram das aulas.

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O académico Francisco Noa, num artigo científico dedicado a José Craveirinha, ilustra dois momentos diferentes da história nacional. “Sia-vhuma” é o retrato do sonho, da utopia de um país que teria “escolas a preço de ser de graça”.

Num segundo poema, de acordo com Noa, “Tanjarinas de Inhambane”, o poeta revela as suas frustrações em relação ao rumo que o país tomou.

“Não foi fácil assimilar a história, mas aos poucos fomos assimilando a nova fase, deixámos colonialismo havia pouco tempo”, caracterizou.

Cedo, prosseguiu, percebeu que o rumo a seguir era o de ajudar o povo a orientar-se, esquecendo por completo o que fora o regime colonial.

Ao chegar a Maputo, depois da Luta de Libertação Nacional, a Frelimo procurou informar-se sobre os artistas que eram pela causa da revolução socialista e os convidou a participar da luta que deveria prosseguir, não com armas, mas semeando a nova ideologia na mente das pessoas.

O percurso seguinte foi marcado por capítulos de pintura de murais retratando o quotidiano dos moçambicanos.

Conforme uma resposta que Mankew deu ao “Notícias”, durante a realização do IV Congresso do Partido Frelimo, em 1983, enquanto pintava um mural no distrito Matutuíne, “nós retratamos a vida do nosso povo”.

Por outro lado, o artista passou a integrar as equipas do grupo de artistas e escritores que acompanhavam o Presidente Samora Machel nas suas viagens presidenciais ao estrangeiro. É daí que conheceu então diversos países que seguiam a orientação socialista, onde, inclusive, expôs e orientou oficinas criativas.

Foi numa dessas viagens que recebeu o convite para ser membro da Academia das Artes da República Democrática Alemã (RDA).

Orgulha-se do facto de, mesmo sem ter estudado formalmente numa escola de arte, conquistado essa façanha.

Todos caíram no abstracto

A geração de Mankew apostou, sobretudo, no realismo. “Nós íamos buscar as marcas do nosso povo para registar”, disse, explicando a razão pela qual na altura se apostou mais na mesma corrente artística.

Com a democratização da informação, através da internet e o acesso mais fácil ao livro, os artistas mais jovens estão munidos de mais material, o que os possibilita uma escolha mais fundamentada.

Alguns destes jovens optaram por investir no abstracto, o que Mankew olha com algum cepticismo, por um lado, por, conforme observa, não representar Moçambique. Por outro, por entende-la como uma via mais fácil de não transmitir uma mensagem concreta.

“Ser artista não é fácil. O indivíduo tem que ter algo na cabeça”, expressou o artista, para quem o seu trabalho não pode estar vazio de uma ideologia política, que seria a causa pela qual deveria combater.

Mankew esclareceu que não é contra a corrente, até porque, disse, “eu penso que tanto quem nasceu em África assim como na Europa, as vezes, culminam na mesma ponte”, para dizer que todas servem, mas que é preciso observar os contextos.

Transmitir o legado  

À semelhança do que acontecia em Matalane, quando era menor, que os mais velhos transmitiam aos menores o que sabiam, sua intenção é abrir uma escola de artes, na qual partilharia o que foi bebendo ao longo dos seus 80 anos.

“Se eu pudesse criaria uma escola para ensinar o pouco que sei”, disse, humildemente. Não obstante já ter tentado instruir a alguns que se colocaram em fuga antes do término das lições.

*Publicado Jornal Notícias 04/10/17
 
 

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