XIQUITSI: um depósito de sonhos

Arranhões no violino, o berro de um contrabaixo ou o elevar de alguma voz melódica, de arrepiar a espinha, com pautas de notas musicais dispersas é o ambiente que se viveu antes de mais um concerto do Xiquitsi.

Faltavam poucas horas para o espetáculo inaugural da segunda série da temporada 2017 de música clássica, na quinta-feira, quando chegamos ao Teatro Avenida, em Maputo.

As turmas estavam divididas, algumas crianças estavam no andar de cima, enquanto outras ocupavam os assentos da plateia com os instrumentos ao colo para os últimos arranjos e orientações dos professores.

A iniciativa vai buscar aos bairros suburbanos de Maputo menores para ensiná-las, gratuitamente, um género musical pouco comum, sobretudo, nestes pontos da cidade: a música clássica.

O fim imediato da iniciativa é integrar estes meninos na sua orquestra. Mas a longo prazo é a formação de músicos que encham as salas mais emblemáticas do mundo, isso sem contar com a criação de uma plateia que se disponha a consumir uma orquestra.

Futuro engenheiro

que toca clarinete

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Kelvin Leonel (Fotografia de Iaías Sitóe) – publicada na edição de 05/08/17 do Jornal Notícias

Kelvin Leonel deixa o seu clarinete a repousar sobre uma cadeira, no andar de cima, para conversar connosco. O concerto que se aproximava não o deixava nervoso. Já está habituado. Entrou para o projecto há dois anos e sete meses.

Aos 16 anos, a frequentar o segundo ano de construção civil, nível médio, Kelvin passa as tardes a estudar música. Reside no Chamanculo e chegou ao Xiquitsi pela mão do avô. “Eu não conhecia esta música, mas agora gosto”, confessa.

Actualmente, assume, é uma paixão que faz parte da sua vida e a intenção é apostar e investir mais de modo a evoluir e construir uma carreira internacional sólida. Em parte, terá pesado para tal uma música em particular: “Pirata das Caraíbas”.

Paralelo à música clássica, ele não descarta trilhar pelos caminhos do jazz, ritmo rico em elementos tradicionais africanos, no qual, confessou, render-se à sua harmonia.

Do andar de baixo ouvem-se os últimos arranjos, o afinar dos instrumentos e das vozes. É tudo preparado no mínimo detalhe. Há uma atenção para tudo.

Recriar Fanny Mpfumu e Gabriel Chiau

Sentada ao lado de Kelvin Leonel estava Karen Massingue, igualmente com 16 anos, a frequentar a 10ª classe. Vive no bairro das Mahotas. Ela toca viola de arco.

“Quando cheguei pedi um instrumento que fosse comum, mas sugeriram-me a viola de arco e estou a gostar”, conta.

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Karen Massingue (Fotografia de Iaías Sitóe) – publicada na edição de 05/08/17 do Jornal Notícias

Para além dos acordes que liberta, Karen Massingue mostrou-se encantada com a textura da madeira que reveste o instrumento, bem como pelas cordas.

Da música clássica aprecia a densidade rítmica e melódica que a compõem, que não encontra em nenhum outro género musical.

Sonha com grandes palcos, mas vê-se mais a dar aulas de música. Ainda que nas entrelinhas tenha ficado claro que a música mudou o rumo da sua vida.

“Se pudesse ensinaria solfejo porque é a base para que as pessoas possam perceber a música”, confidenciou Karen.

Aprecia o Xiquitsi e pensa que se a iniciativa se unisse mais às escolas, convidando os alunos para assistirem aos espectáculos e participar em workshops, poderia produzir mais músicos.

“Penso que assim estaríamos a levar a música a mais pessoas e permitiria que os alunos pudessem ouvir e apreciar este género”, disse.

Cheia de projectos, ainda contou, com certa timidez, enquanto libertava um riso dos lábios, que traz no seu bornal de sonhos a ambição de um dia poder recriar as marrabentas de Fany Mpfumo e Gabriel Chiau.

À semelhança destes dois, vários outros petizes encontraram no Projecto Xiquitsi uma residência para depositar sonhos, tendo na música os seus alicerces.

*Publicado no Jorna Notícias na edição de 05/08/17.

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