Os peregrinos … (1)

Por Reinaldo Luís

É manhã fria e tranquila, no município da Matola. Os passos são ágeis e animados; gargalhadas e comentários pairam, soltos, na frescura do dia, que nascia, lento e santo; afinal, é Maio, mês mariano. A multidão cria, entre a cacimba do amanhecer, imagens assustadoras, causadas pelas suas roupas desportivas, chapéus, pastas de costas, plásticos de marmita, numa das mãos, e bastões na outra.

E as lamúrias são cânticos, à hossana, nas alturas.

Algures, em João Mateus, um outro agrupamento, com as mesmas características, concentra-se. Reza. Recebe bênçãos. Outros, distam, já, cem metros. Alguns há, mais de duzentos atrás. Talvez haja outros, ainda em casa. Alguns já alcançaram a meta, mas poucos, se calhar. Há adolescentes, jovens, adultos e velhos, em procissão.

Namaacha ainda é longe, pessoal. Portanto, vamos cavalgar – alertava, com a voz ensurdecedora, o avançado Hélio.

Este ano, eu chego – deu a entender Dudú, olhando para o líquido quente, que, entre as calças e a cintura, exibia a sua tampinha vermelha. A fragrância era espectacular.

Ano pós ano, usava como desiderato, para conseguir escalar as montanhas. Pensava ele que aquilo daria um óptimo nitro.

Avelino … tens que ser uma lenda, nesta noite. Não conheces a distância… melhor para ti – E os olhos cuidadosos de Gil o fitavam.

Mas é claro que vou. Na minha província, Inhambane, caminhava mais de cinquenta quilómetros. Não vai ser Namaacha que me vai fracassar – Respondeu Avelino, com todo o astral levantado.

Ayéééééé! – resmungou, alto, Gil. Deu-lhe apenas um tapa no ombro, e pôs-se a caminhar.

Um silêncio cresceu, entre os dois, e progredia para os demais. O tempo passava, e, com ele, um combino, que estampa fadiga, nas suas faces. As horas e a velocidade da procissão dão indicações de uma boa fatia percorrida. Já passa das 10 horas da manhã. O sol sobe, e aponta os seus raios, no alcatrão vago. Gotas de suor caem, sobre o asfalto quente e, às vezes, no chão empoeirado. Como se faz, amiúde, nos campos de treinamento militar, os pés marcam cadência, no chão; piadas e risos soltam-se, no ar. Cânticos e louvores se dão, a todo o momento.

Caminha-se, em ritmo acelerado, e sem descansar, em direcção ao pôr-do-sol. Nas paragens, os transeuntes sussurravam, ao sabor do vento preguiçoso, na companhia de um Frozz, e junto às gotas de suor, que caíam no solo, de seus olhos grandes e vibrantes, viam-se sinais de muita pena.

Coitados deles; que Deus os abençoe – diziam alguns, enquanto outros limitavam-se a um simples Forçaaaaaa!

A cinquenta metros, vê-se o mercado do quilómetro 16. O gingar dos peregrinos ganha novas tonalidades. Há desorientação: uns são mais estilosos, e outros, nem por isso.

Mas todos coxeiam e, às vezes, chutam pedras e, em outras, calcanhares dos outros. Os gritos cessam; as bocas secam. Ninguém fala. Nem piadas, nem risos. Só os pés vibram, melodicamente, enquanto as mãos abanam, em correspondência às saudações vindas das janelas dos “TenYes”, que circulam, sem parar.

Ainda falta muito? – questionou Avelino, com a voz ofegante.

A resposta é um coro em silêncio, quase de luto.

Fogo, não acredito ! – retorquiu, já em voz baixa. Mas o vulto não pára. Tal como as galinhas enchem o papo grão a grão, eles, passo a passo, iam conquistando a distância, e tornando, cada vez mais, o seu destino próximo. Umbeluze já não é obstáculo, a não ser que surja, de novo, à sua frente. É a indicação de que se está perto da primeira parada. Boane está a duas, três, quatro curvas, no máximo. É meia hora de caminhada.

Caminha-se. Aos poucos, o grupo dissolve-se. Avelino já não aguenta. Tenta ceder à força da preguiça, cansaço, sei lá. Mas não: não pode. Está quase lá. Só faltam algumas curvas. Duas, três, quatro, talvez.

Já estamos quase lá. Se fosse de noite, daqui conseguiríamos ver as lâmpadas da vila. Sejam bem-vindos a Boane, putos ! – informou Jonas aos principiantes. E logo foi interrompido pela confirmação de um outro avançado, Marcelino, que, aos berros, quase fazia com que o cortejo se desorganizasse, e que os homens largassem as raparigas, que lhes prometeram, logo que chegassem à Namaacha, sob os seus cuidados, noites de abraço apertado, ou muito mais.

Agora, os passos são mais objectivos, e a multidão mais expectante. Afinal, é só um pouquinho de caminhada! A conversa volta a ganhar o espaço, e, de repente, aplausos, unanimidade. Já começam a zombar. Gil é o primeiro:

Avelino, ainda te lembras do que disseste, na Matola? Namaacha não é Inhambane, Zavala… Namaacha é um lugar incomum. Esta estrada purifica almas, todos os anos, no mês de Maio.

Só estarás limpo, quando os teus pés estiverem mais leves, com força, e decididos:

Insólito! Talvez Loucura!

Todos riem ruidosamente, em gargalhadas. Marcelino, Jonas, Hermen e Hélio aceleram o cortejo. Os caranguejos fracos balançam fortemente as ancas, com o peso das pastas, mas andam. Andam, a mirar a distância, o ambiente, as placas, os reclames luminosos, que lhes indicassem o seu paradeiro. Já não há piadas, nem risos descontrolados.

O mercado da vila já está à vista. As meninas sorriam, de cara virada para os seus parceiros, claro, de viagem. Voluptuosas e apressadas, enfiaram-se na pista, numa pressa, que podia ser de grande valia, para não se stressarem mais do que já estavam.

Avelino pára, pega as ancas. Está com os olhos vermelhos e brilhantes; mas não chora. Será? Contorce-se num bailado singular, já fora do grupo. Coxeia. Anda. Pára. Faz perguntas. Os pés já não lhe obedecem, mas, de quando em vez, anda. Devagar, mas anda. Faz a subida do supermercado. Aqui e mais adiante, pára e interrompe a caminhada.

Apoia-se aos portões velhos de um quintal, com uma casa branca no meio. Todos riem. Suspiram. As mulheres relaxam as garras.

Já chegámos a Boane! Vem descansar, pois teremos mais – gritam todos, em uníssono.

(Continua)

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