ALEXANDRE LANGA – Um revolucionário, idealista, sem socos

Por Dadivo José

CORRIA o último trimestre do ano 2002. Depois de um espectáculo realizado pela Associação dos Músicos Moçambicanos com o objectivo de ajudar o Alexandre, naquilo que poderia ser considerado um terceiro resgate, não da “troika” mandona da Europa, o resgatado em causa viu-se enganado.

 

Em desespero, porque o homem veio de Chibuto, onde o soco é imagem de marca, teve uma afirmação que ficaria na história: “Swita hela hi ti nhindi” (Vai acabar aos socos). Alexandre sentia que o percurso dele já ia ao acaso e não tinha nada nas mãos.

Estava mesmo o bom do Kid Munhamana fazendo fé às escrituras, quando dizem “viemos ao mundo sem nada e, também, partiremos dele sem nada”. Essa deve ter sido a triste sina deste músico, para cuja qualificação os adjectivos sempre irão faltar.

Na manhã de 27 de Dezembro de 2003, uma segunda-feira, todo o mundo lamentando o Campeonato Africano de Básquete feminino perdido para Nigéria, eu sentado no “chapa” que fazia trajecto Xiquelene – Baixa, na paragem do Ponto Final, a voz de Rosa Langa anunciava a morte de Alexandre Langa. Era o fim previsível de um homem que cantou Moçambique, desde que levou no seu coração o “Majika de ndavene”, donde saiu em 1959 (16 anos na altura) para Maputo, procurando um lugar ao sol. Segundo a reportagem do jornal “Domingo”, de 4 de Janeiro de 2004, assinada por Belmiro Adamugy, não foi daquela vez que o homem se firmou. Teve de voltar para Ndavene em 1962, donde sairia para usar Maputo como ponto de passagem para África do Sul. Como diz Cremildo Bahule, as migrações transformam o artista num tipo viajado no seu talento. Langa conheceu o Fany Mpfumo e, numa relação quão Platão – Aristóteles, fizeram história na África do Sul e juntos regressaram em 1973.

Nada poderia acabar aos socos para a vida de Alexandre Langa porque tudo para ele voava sem nenhum sinal de inconformismo. O homem chegou a ter uma flat, mas morreu nuns becos do meu famoso bairro da Maxaquene. Parece que ele não queria nada com algo material. A felicidade, para ele, era comemorar a derrota dos colonialistas, ou se vangloriar do uso dos discursos samorianos para avisar o Smith para “anga toloveli Moçambique”. Sim, ele tirava com a canção os discursos do momento. Langa foi o maior intérprete da revolução e das transformações sociais que o país ia sofrendo. Ouvindo as músicas dele, localizo cada uma das fases do percurso histórico de Moçambique. Mas que ambição material tinha ele? Nenhuma. Tudo o que queria era um dinheirinho para ir KaVieira, não só para beber no “senta-baixo”, mas também para aconselhar a senhora dona da bebida. Era preciso esconder todos os instrumentos contundentes do local do convívio cujas emoções são geridas pelo álcool. Lá na zona de Viera (Maxaquene B), os madoda partiam-se as caras por causa da teimosia da senhora. Melhor mesmo seria ir ao campo ver futebol, para esquecer os dissabores da vida. Depois de muitos anos tentando levar a vida como músico, o homem descobriu que estava sendo usado, que nunca seria respeitado na sociedade, seria um Mugunda, sem lar e sem família. A música não dava dinheiro nenhum, por isso ele nunca valorizou o lado material da vida. Mas no futebol, o ópio do povo, as pessoas empenham-se para garantir um lugar e esquecem-se das preocupações da guerra protagonizada por dois galos que lutavam entre si. “A minkuku ya gwabana” (luta de galos), e o povo deixa-se enganar com o futebol.

Depois do futebol, em que sempre apoiava o seu clube do coração, o “tricolor”, só lhe restava pegar na guitarra e tentar perceber esta vida da cidade cheia de boateiros e candongueiros. Se Machel combatia os “xiconhocas” com os seus discursos, Langa ajudava o seu líder com as suas canções. Ele denunciava todos os candongueiros, especuladores dos preços, exploradores do povo. Em Tsalala era preso o líder deles, mas ainda eram muitos, principalmente nas imediações do chinês Ho Ling, ali mesmo na esquina entre Zedequias Manganhela e Filipe Samuel Magaia, que ainda hoje apresenta a mesma face de intensa actividade de comércio informal. As pessoas não podiam querer vida fácil enganando as outras. Era preciso trabalhar para que os seus rendimentos não fossem questionados por quem quer que fosse. O Jossefa Mukombo estava sempre bêbado, mas era desempregado. Onde apanhava ele o difícil metical? Esse Jossefa tinha de perceber que o dinheiro roubado e o apanhado com sacrifício tinham sabores diferentes – “a mali ya ku yiva niya ku tirha/ yi hambanili ku nandziha ka yona/ ti voneli we djaha”. Em “Jornal notícia”, Langa pergunta como e onde vais deixar a família quando estiveres a cumprir a pena, por causa do dinheiro roubado. Dá gosto ouvir este conselho, dentro de um ritmo que o tornou único. Langa é mistura de Majika, Marrabenta e outros ritmos sul-africanos coleccionados na diáspora.

Voltando à questão do dinheiro roubado, as luxúrias de Jossefa, que bebe de 1 a 30 sem trabalhar, Langa até entendia os jovens que assim se comportavam. Era tudo uma questão de amor, ainda que não aconselhasse o jovem a usar o dinheiro para conquistar uma menina. “Tsama uswi tiva swaku i lirandzu la matlinga” (fique sabendo que é um falso amor). Ele sabia, por exemplo, que não teve a Rosa Maria porque ele era um duro, um bolso furado. Sim, a Rosa Maria sabia que ele viajou faz tempo, mas nunca se dignou ir à Caixa Postal 2000 deixar uma mensagem para o programa de Viera Manala, “Xiyandla famba, Xiyandla wuya”, um programa de troca de mensagens que acontecia uma vez por semana. Será que “uyo kwata ke?” (estás zangada?) Não, caro Alexandre, ela não está zangada, ela só quer pessoas presentes e com dinheiro, ela quer sapatos de salto alto (ma soka) e andar nos carros Lada. Ele ainda pede “loku ungani lavi ni gweli/nita vona manwanhani matlinga” (se não me queres, diz-me para ver outro rumo…). A questão era dinheiro que ele desvalorizava, por ser um idealista num mundo já materialista. Estas duas músicas complementam-se e a primeira, particularmente, foi altamente recriada por Bob Lee.

https://www.youtube.com/watch?v=9ikTnF8pqvw

Quando finalmente se apercebeu de que só podia ser alguém se tivesse dinheiro, já era tarde. O dinheiro não resistia no bolso, vivíamos todos cheios de dívidas ao ritmo da dívida externa do país. O fim do mês é de alegria porque o salário vem, mas é igualmente de tristeza porque tudo vai saldar dívidas. “A tlavanga xikweneti a weti yi helili” (homem pensando nas dívidas porque o mês já se foi). Cantou isto Alexandre na década de 80 e nós continuamos cantando, agora fugindo também dos agiotas cada vez mais agressivos. Talvez tenha sido por isso que o bom do Alexandre achou que devia ter ouvido o conselho dos pais. Casar com uma “Xikangalafula” (a casca de canhu), uma mulher sem muitos adornos, mas útil e respeitável aos olhos dos avós, porque a outra, toda ela pintada, parece gala-gala. Os mais velhos perguntam: que manias são essas que foste buscar na cidade? Devem ser esses macacos da cidade de que a esposa falava. Ela tanto pediu “ungayi uya hlwela ka Maputsu/ unga kumana ni va macacao da cidade” (não demores em Maputo porque há macacos da cidade). Alexandre encontrou macacos da cidade que se alegraram às custas dele e ele ficou sem um tostão no bolso.

Que fazer neste mundo selvagem? O melhor seria rezar para que a chuva caia lá em Gaza, para dançar, trabalhando a terra, para fugir desta cidade em que se vive ao ritmo do dinheiro que não existe, e com gente também fofoqueira. Juntando as duas músicas, ele diz “loku a ku tsika kuna pfula/ anita kavata ni tsoveka ni makatla”. Aqui está a ironia de Alexandre Langa. Por outras palavras, nós todos vamos morrer sem ver uma chuva que nos ajude a produzir o suficiente para o nosso sustento, sem dependermos da caridade dos outros. No dia em que isso acontecer, estaremos velhos e mortos e ou com colunas partidas, sem capacidade para trabalhar. A única coisa que podia ter acontecido ao mestre Langa, ao fugir da cidade, seria ter-se livrado daqueles que só faziam fofoca, dizendo que ele estava de baixa no hospital, enquanto ele anda por aí. Será? Entretanto ele pedia para “vatsiketama unwa/ munga tximisa doropa” (deixem de boatos senão sujam a cidade).

Querendo voltar à terra, lá em Ndavene, Magunganine, como é que iria, querido Alexandre? A guerra não permitiria, a não ser que tivesse “magasso ya pfundla” (passos e agilidade de coelho), para escapar às emboscadas dos homens das armas durante a guerra. Em Mabunganine, há um bicho que vai acabando as pessoas uma a uma. Este bicho é “nhambondzana”. Quando as pessoas acabam sem explicação, há sempre o poder maléfico da feitiçaria evocado. Nesse caso, os velhos (sempre eles, coitados) são chamados para beber uma poção (não a mágica do druida Panoramix, da revista “Astérix”). Os feiticeiros são descobertos e revelam todas as suas vítimas. Langa canta este hino no período entre finais da década 80 e princípios da década 90. A guerra está insuportável, o clipe que ele faz naqueles tempos de Masseve, novidade na TVM, é comovente. Ele canta no Cemitério de Lhanguene assistindo ou sendo assistido por campas de um cemitério que viu muitos corpos despachados numa vala comum, com tanta chacina que acontecia diariamente. Afinal de contas, esses velhos devem ir beber “mondzo”, sim; esses velhos que declaram guerras e os mancebos é que morrem. Ele vai mais longe, quando diz “a tiku leli loku akova la mina a nita komela madoda maya txinisiwa ntwayi (se este país fosse meu, todos os dirigentes iriam a um castigo militar). Ele tinha razão e teria mais razão hoje. Estes dirigentes precisam de um castigo lá nas matas. Afinal de contas, eles formaram-se nas matas de Nachingweya e não admito que se tenham esquecido dos bons ideais que os moveram para lá. Um facto curioso na lírica do velho Langa é cantar seu Mabunganine, chorando pelos seus familiares. Dirão muitos que os grandes acontecimentos, de impacto largo, geográfica e historicamente, é que devem ser registados. Discordo porque no meu primeiro livro de História, estava eu na 4.a classe ainda, aprendi que eu também tenho uma história. A história genealógica de Alexandre, de Dadivo José ou de qualquer mortal moçambicano não pode ser hipotecada por causa da arrogância imbecil dos nossos dirigentes. Com estes dirigentes, quebrou-se o pacto social e o povo reivindica, não chegando ao poder, como radicaliza Azagaia, mas como reclamou sempre o bom povo de Deus, sempre que lhe aparecesse um Saul qualquer como rei. E que essa história de povo no poder se mostrou não implementável em 1871, na dita Comuna de Paris, quando os operários e camponeses só ficaram 72 dias. Há quem diga que o velho Langa só reclama por Mabunganine e pelos seus por mero egoísmo, mas não. Na verdade, tal como hoje, todo mundo chora, mas o comodismo e insensibilidade daqueles reage, distribuindo a ideia de que tudo não passa de um boato. Vimos filmes de 18 de Julho de 1987, em Homoíne, na ilusão de que nada se passa nada, até porque enquanto a água não invadir o meu quintal o problema de erosão é sempre do vizinho.

Alexandre Langa voltou a Ndavene, sim; voltou para Mabunganine, já horizontalizado num caixão, sem dinheiro, mas com o facto de ser o homem que de lá saiu para gravar cerca de 150 canções nos estúdios da RM. Um músico que, além de cantar, tocava bem a guitarra e o saxofone. Esteve hospitalizado com gravidade duas vezes, numa das quais, em 1994, foi necessário um movimento de apoio para recuperar e reaparecer nos convívios musicais. Mas já não havia força nem para levantar um soco sequer e lutar pela vida. O homem estava acabado, tal como o seu guia de inspiração, Samora Machel. Não consegui assistir ao funeral para prestar a última homenagem, mas o meu enviado especial, Joaquim Alberto Chissano, na altura Presidente da República, lá esteve representando-me. Fica na memória o facto de ter trabalhado na banda RM entre 1978 e 1986, ajudando a cimentar a posição que esta banda ocupou no panorama musical moçambicano. A editora Mpundzu tentou fazer algo com ele, mas já nessa altura o mundo tinha feito dele um indivíduo de pouca crença.

Não se pode escrever tudo sobre um indivíduo com esta dimensão mas, enquanto sonhar não pagar impostos, proponho-me a reunir todos os meus parcos saberes, inexistentes recursos materiais e entrar numa aventura chamada “Biografia de Alexandre Langa”. Por um ícone destes, vale o sacrifício.

Dezembro de 2015

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