Xixel Langa: mulher de música e poesia!

A ARTE levanta questionamentos e propõe debates sobre os dogmas e tabus da cultura. Foi nessa perspectiva que Xixel Langa concebeu o seu primeiro álbum de estúdio, intitulado “Inside Me”, que surge depois de vinte anos de carreira.


Texto: Leonel Matusse Jr.    Foto: Urgel Matula

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Este projecto propõe que se discuta “Deus”, o amor e violência doméstica, na visão do africano. “Não a que os colonos nos trouxeram”, esclarece a cantora e compositora. Mas não só, é ele (o álbum) todo um convite às outras formas de encarar o mundo, que não as padronizadas.

Numa tarde em que o sol espreitava entre as nuvens, tímido, depois de alguns pingos ao meio dia, o “Notícias” foi conversar com Xixel Langa, no “Jardim dos Madjerman”, na avenida 24 de Julho, cidade de Maputo. É aqui que nos últimos tempos passa as suas tardes a vender os seus discos, cuja produção foi independente.

Antes da entrevista, já tínhamos elaborado um parágrafo introdutório, a entrada – no jargão jornalístico – que era o seguinte: “Era uma vez uma mulher que nunca quis deixar de ser menina, que nunca quis crescer”. Mas, no fim da conversa esta iniciativa estava invalidada, pois percebemos que estávamos diante de uma mulher madura e com uma visão clara do que quer.

Optei por uma gravação independente porque sempre fui livre, uma mulher que aprecia a liberdade, que sempre viveu de forma independente e trabalha para comer. Este trabalho é sobre isso e é também para isso”, explica Xixel Langa.

Inside Me” surge depois de uma carreira de vários anos, repleta de diversas colaborações e apresentações em festivais nacionais e internacionais como o Cape Town Jazz Festival, em 2008. “Provavelmente fui a primeira cantora moçambicana a subir ao palco deste festival”, orgulha-se.

Nos seus anos de percurso integrou vários projectos, a destacar a banda Tucan Tucan, do baterista moçambicano Frank Paco, a residir na vizinha “terra do rand”, ou “terra dos cunhados”, como diriam alguns. Durante três anos, entre 2006 e 2009, período em que foi membro da banda, Xixel residiu na Cidade do Cabo, onde teve a oportunidade de conhecer outra qualidade e exigência musicais.

De sorriso fácil e pronta a falar – ela gosta de conversar -, Xixel disse-nos que este episódio foi essencial no seu amadurecimento, embora já convivesse no meio artístico de forma profissional desde 2002, em Maputo. Ter residido naquela cidade sul-africana tornou-a mais madura.

Os sul-africanos, prosseguiu, têm outra percepção sobre o valor e o significado da música. E das artes no seu todo.

Pelas simpatias que a sua voz foi conquistando com o tempo, há muito que o mercado clamava por este álbum. Entretanto, ela ainda estava a cultivar-se. Recorda-se que quando tinha 10 anos de carreira pensou na possibilidade de gravar, mas não se sentia segura para tal.

Passada essa fase, num belo dia sentou-se para ver o que já tinha feito ao longo destes anos todos. E chegou à conclusão de que já estava na hora de brindar os seus admiradores com um CD.

O repertório que levou para gravar no estúdio era vasto. Espelhava o que foi compondo ao longo dos anos. Porém, optou pelas criações mais recentes que compôs, embalada pela sensibilidade que a gravidez proporciona às mulheres.

Quando o álbum ‘aconteceu’ eu estava grávida e a sentir um outro tipo de sensações. Na verdade, estava muito mais sensível”, explica, para justificar a razão porque essas músicas é que acabaram recheando o “Inside Me”, com 13 faixas e uma remix.

Mas há também espaço para as canções antigas, uma das quais a mais famosa. Trata-se de “Ubuya hi kwini”, composição de Demócrito Manyssa, desta vez recriada em ritmo de Bossa Nova, que Xixel considera ser mais apelativa e perceptível para o lamento que nela conta.

A estória deste número, cantado em Xichangana, é a pergunta que uma mulher faz ao marido, que regressa ao raiar do sol, depois de ter saído de casa no dia anterior, alegando ir trabalhar. “Donde vens?”, questiona no tema. “Isso é comum numa sociedade em que os homens têm a liberdade de ser e estar como quiser”, anota.

Deus africano e ritmos do mundo

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O ÁLBUM é uma fusão que reflecte parte significativa do que Xixel Langa foi ouvindo ao longo da sua vida, com a influência do pai (é filha do conceituado músico Hortêncio Langa). “Bebeu” também da música feita por negros um pouco pelo mundo inteiro. Esta experiência começou ainda na infância, em casa.

Sendo filha do músico Hortêncio Langa, uma das maiores referências do país em termos de música moçambicana, coabtiva em casa com a música. Foi neste ambiente que lhe foi introduzido o jazz, ritmo que ele muito aprecia, conforme narra.

O “Inside Me”, título que por si só é um convite para mergulhar no universo da cantora, uma vez que a tradução directa para o português seria “Dentro de mim”, é uma fusão de soul – sua maior influência -, jazz, afro jazz, bossa nova, música do oriente africano e, naturalmente, a moçambicana.

Eu quis unir tudo aquilo que é nosso, é africano. Este álbum é tudo o que é música feita pelos negros espalhados um pouco por todo o mundo, mas feita por uma africana de Maputo, machangana, que no fundo não deixa de ser uma cidadã do mundo”, justificou-se.

Depois de relaxar os ombros, menos tensa, explicou que olha para a música como outra forma de educação. E sob esse prisma procura, nas suas composições, espelhar a realidade moçambicana, africana e do mundo.

Por conseguinte, há no “Inside Me” quatro faixas que falam de Deus, mas não sob ponto de vista ocidental, que considera não adequado à realidade africana. Exemplifica que, nesta acepção, olha-se a Igreja como edifício, quando na verdade “Igreja é a família”.

A proposta é trazer, continua, Deus africano, não o dado pelo colono. Esta opção surge do facto de ter a impressão de que o povo deste continente parece ter perdido a essência e a capacidade de ouvir o seu interior.

As pessoas chamam-se de irmãos na Igreja, mas em casa não!”, observa, espantada com o contra-senso. Segundo argumenta, tal ocorre porque as pessoas são vulneráveis e facilmente influenciáveis.

Os Hebreus, descritos na Bíblia Sagrada, para si, são o povo Bantu que por ter um Deus que os castiga e faz sofrer para punir os seus pecados, “facilmente caem noutras crenças”. Entretanto, esta gente está a desviar-se, pelo que “temos que voltar às nossas raízes”, defende a compositora.

Na música “vodoo”, por exemplo, narra o percurso de alguém que quis fugir do destino e adoptar hábitos ocidentais, mas os espíritos o chamaram a cuidar do seu povo, porque deveria ser curandeiro.

Let me be”

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FEMINISTA assumida, não deixou de levar este seu lado para o álbum. Já tinha evidenciado esta tendência, embora de forma metafórica, pela animação no tema “Ubuya hi kwini”, em 2004. Mas Xixel leva-nos de volta ao seu grito, na faixa nove, cujo titulo é “Let me be” (na tradução livre para o Português seria Deixa-me ser). Nela, reclama o facto de alguns homens não deixarem as suas mulheres terem um emprego.

Defende que o objectivo delas ao fazer isso é contribuir nas despesas domésticas que, em alguns casos, como diz, os homens não aguentam, mas que mesmo assim não as deixam trabalhar. “Outros não deixam dinheiro suficiente, mas quando voltam querem encontrar comida na mesa”, critica.

O melhor, prossegue, é permitir que as mulheres trabalhem para evitar que elas saiam à busca do que falta na mesa noutro lugar, às escondidas e de forma indevida.

Estando atento aos seus posts no Facebook, percebe-se a sua revolta contra a violência doméstica. Segundo explica, nasceu na Igreja a ouvir o evangelho clamando amor e cuidado mútuo, o que, entretanto, não via na rua.

Algumas amigas suas, na adolescência, já sofriam violência por parte dos parceiros. “Elas apareciam com marcas de cinto no corpo porque os namorados batiam nelas. Isso criou em mim uma revolta”, esclareceu.

Xixel Langa acredita que estes comportamentos resultam de falhas na educação. Para si, os pais devem mostrar, a partir de casa, gestos e atitudes bonitos, como um abraço, um beijo, carícias para que os mais novos possam reproduzi-los quando crescidos.

Não obstante, Xixel entende que não são só os dilemas económicos que residem no quotidiano de uma família. O pilar de um lar é o amor, que enquanto existir deve ser vivido ao extremo.

Até porque “o amor é uma das coisas mais bonitas que existem, mas o percebo como algo que estamos à procura”, revela. E, por essa razão, no ‘Inside Me’ falo no sentido de sentimento que temos e vemos quando estamos felizes”, conta.

Xixel lamenta que as pessoas estejam a recorrer a palavras institucionalizadas e padronizadas como manifesto de amor para conquistarem e manterem as suas relações, sem que sejam reais.

São negociantes à procura de sócios que usam palavras bonitas somente para levar uma mulher para casa porque a sociedade assim o exige”, afirma.

Elas sabem o que querem

Neste projecto, ela aproveita para prestar uma homenagem às mulheres que tanto admira pela coragem e clareza nos seus objectivos: as prostitutas. O título da música é “Street girls”.

Conta que diversas vezes desceu à baixa da cidade de Maputo, com o seu esposo, Cheny Wa Guni, membro da orquestra de música chope, Timbila Muzimba, e via aquelas mulheres empenhadas para ganhar a vida, levar algum para os seus filhos.

Estes episódios levaram-na a respeitar aquelas mulheres e a fizeram perceber, igualmente, que na verdade elas controlam aquela situação.

Dois anos de intenso trabalho

A produção deste álbum, que foi gravado na Cidade do Cabo, na vizinha África do Sul, durou dois anos. A banda que a acompanhou foi a sul-africana Top Dog SA. À excepção de duas músicas em que teve a colaboração de Demócrito Manyssa e Vintani Nafasse, a composição é toda de Xixel. Nos arranjos contou com a colaboração de Camilo Lombard.

Inside Me” só terá o seu lançamento oficial este ano, mas passado um mês após o lançamento já vendeu mais duzentas cópias.

O objectivo é que no dia do concerto de lançamento já possam existir pessoas que conheçam as músicas e cantem, em coro, com ela.

Meu pai não queria que fôssemos músicos”

Na altura, quando era mais nova, não percebia por que é que o pai lhes negava a possibilidade de seguirem a carreira musical. Mas já crescida compreendeu que os cortes de energia e de água repentinos eram porque não havia dinheiro para pagar as contas.

Embora morassem no bairro Central A, convivessem com crianças de classe social alta, não tinham um nível de vida à altura do sucesso profissional do pai. Pelo que era natural que Hortêncio Langa não quisesse que os seus filhos passassem pela mesma situação.

Entretanto, não pôde controlar o destino dos seus filhos. Vendo eles profundamente mergulhados na música, não restou alternativa senão aceitar e acompanhá-los nas suas carreiras. Nos dias que correm até partilha o palco com eles.

Fonte: Jornal Notícias

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