EXPOSIÇÃO DE NAÍTA USSENE : retrato de um percurso  

 
 
Por  HÉLIO NGUANE
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Foto: J. Capela
NAÍTA Ussene saiu de Angoche, província de Nampula, numa embarcação, para Maputo com um objectivo bem claro: singrar na vida. Foi servente na Revista Tempo, mas quando teve a oportunidade de pegar numa máquina fotográfica mostrou o que valia e conquistou o seu espaço no fotojornalismo moçambicano.
Para assinalar os seus 42 anos de carreira, Naíta inaugurou, na Fundação Fernando Leite Couto, uma exposição individual intitulada “O Barro que nos Molda”. A mostra narra o percurso deste personagem, que com a sua lente narra o dia-a-dia da sociedade.
As 21 fotos emolduradas têm o toque de Naíta Ussene e são o reflexo da visão deste fotógrafo em relação aos fenómenos sociais que o rodeiam. Nas imagens é possível ver momentos particulares: do sorriso de uma bela mulher à labuta de pescadores e até factos políticos e económicos que marcam o país.
As obras expostas são a preto e branco e misturam sentimentos: “alegrias e amarguras, decepções e esperanças ou as penumbras e os reluzires, que ora metaforizam tragédias, ora gáudios do nosso país”, lê-se no catálogo da exposição.
Claro e directo na hora de captar o momento, Naíta Ussene usa a fotografia como um meio para se expressar. No seu trabalho é afirmada a importância do fotojornalismo na história de Moçambique pós-independência. Algumas imagens foram tiradas no calor da guerra dos 16 anos, outras estampam o sorriso que nasceu com a conquista da paz. Mas também existem fotos recentes, tiradas no ano 2000.
“Uma boa imagem não precisa de legenda, deve ser entendida por todos, independentemente de seu estrato social. As fotos seleccionadas para a mostra não têm legendas e títulos. Quero que as pessoas olhem para elas e tirem as suas conclusões”, disse o fotógrafo.
A exposição comporta ainda alguns locais por onde o fotojornalista passou desde o norte, o centro até ao sul do país, mas predomina o distrito de Angoche, sua terra natal.
“É a minha terra, o local onde nasci e cresci. Sempre que regresso não perco a oportunidade de tirar uma fotografia. Gosto de retratar tudo que vejo, por isso sempre levo uma máquina comigo”, esclarece.
O expositor disse que foi um exercício complexo escolher as fotografias para a mostra porque assume que são todas elas boas e com qualidade. Confessa ainda que inspiram-no as vivências de Moçambique, sob o desígnio de “testemunha consciente do quotidiano”.
Naíta Ussene explica que através do trabalho se tornou profissional e a exposição conta uma parte do seu percurso. “O barro que nos molda”, os aspectos que fazem de mim o fotógrafo. A mostra é aquilo que eu sou nestes mais de 40 anos de fotografia. Uma parte do meu trabalho está aqui retratado”, disse.
As exposições têm um sabor especial para Naíta Ussene, são uma oportunidade para reencontrar familiares, amigos, antigos alunos e gente nova. Na ocasião, o anfitrião distribuía abraços e sorrisos, deixava-se fotografar, para assinalar este momento importante da sua carreira.
“Esta não será a minha última exposição. Penso em continuar a expor, retratar momentos”, expressou.
 
Da “Tempo” para o reconhecimento
Fevereiro de 1974 é uma data importante para Naíta Ussene, neste mês entrou numa embarcação, desafiou o mar à procura de melhores condições de vida na cidade Maputo. O momento foi de tal forma marcante que até hoje se recorda da brisa que se fazia sentir na ocasião.
“Quando cheguei à capital, trabalhei como doméstico na casa do capitão da embarcação, que me levou para Maputo. Meu irmão, que já estava nesta cidade, chamou-me para trabalhar como servente na revista Tempo. No dia 9 de Abril de 1974 iniciei as minhas tarefas. Nesta época ainda vivia no bairro da Mafalala”, recorda.
Na revista, o fotojornalista Kok Nam, já falecido, chamou Naíta Ussene para ser servente no sector fotográfico. O convite surge numa época que um dos fotógrafos da instituição havia desistido das suas tarefas. “O fotojornalista Ricardo Rangel, também falecido, estava de viagem. Kok Nam tomou iniciativa e chamou-me para trabalhar como fotógrafo”.
Para executar o serviço, Kok Nam deu a primeira máquina fotográfica ao ex-servente. “Ainda recordo-me do modelo, era uma Mamiya 6 por 6. O meu primeiro mestre deu-me aulas, disse para tirar fotos onde residia e segui o seu conselho. Neste período ainda não publicava na revista”, revive.
Quando Rangel regressou, o jovem fotógrafo ganhou um segundo mentor. Estas duas figuras o ensinaram a arte de fotografar, a destreza de registar o ângulo incomum e o profissionalismo característico dos grandes repórteres fotográficos.
Não tardou que Naíta Ussene publicasse a sua primeira foto na “Tempo”. Esta foi tirada numa aldeia comunal, em Boane, acompanhado do então repórter Calane da Silva.
Depois disso, ganhou motivação e empenhou-se mais no trabalho. No seu dia-a-dia, ilustrava textos de alguns dos jornalistas mais proeminentes da época, entre os quais Albino Magaia, Calane da Silva, Luís David, Carlos Cardoso, Alves Gomes e Mendes de Oliveira. Com eles aprendeu a contextualizar as imagens e a importância do jornalismo na sociedade moçambicana.
Resultado do seu empenho, teve a oportunidade de fotografar momentos marcantes: a guerra, o drama, a dor. Mas também a alegria nas viagens de Samora Machel, os anos depois da assinatura de paz e outros momentos da história do país. Naíta Ussene é dos poucos que teve a oportunidade de fotografar todos presidentes de Moçambique independente.
“Encarei e encaro o meu trabalho com responsabilidade, sempre aberto a aprender”, disse, acrescentando que depois de romper as relações laborais com a Revista Tempo, passou a dedicar-se apenas ao Semanário Savana, do qual é co-fundador.
Apesar do seu longo percurso, o fotógrafo ainda está insatisfeito, sente que não alcançou o patamar que desejava. “Ainda quero tirar a minha melhor fotografia, aquela que me vai deixar satisfeito”, disse, indicando que esse momento vai chegar quando estiver a andar de bengala, bem velho.
Naíta Ussene tem vários projectos. Ainda este ano pensa em lançar um livro com algumas fotos que marcaram o seu percurso. “A obra está ainda na forja, não vem ao público por falta de apoios, mas tenciono publicar ainda este ano”, disse.
Actualmente é difícil
ser repórter fotográfico
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O estágio actual da fotografia aflige este decano. “Hoje em dia as fotos que preenchem os jornais são de reuniões, palestras, workshops, que dizem muito pouco. O repórter fotográfico não tem a oportunidade de ir ao campo (rua) e captar imagens que falam e retractam a realidade”, lamenta Naíta Ussene, para quem os fotógrafos devem ir ao terreno, o local onde a notícia ocorre.
Para ele os grandes jornais estão, aos poucos, a matar o espaço para o repórter fotográfico brilhar.
Apesar desta constatação, Naíta Ussene acredita que a nova geração é promissora. “Temos bons fotojornalistas., talentosos e capazes. Eles trabalham de forma artística e até expõem o seu trabalho além dos jornais”, acrescenta.
*Publicado no Jornal Notícias

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