Escrito por Sara Laisse
Há muitas correntes que nos têm ensinado que devemos regressar ao passado quanto ao que comemos e quanto ao tratamento que damos à terra, ao planeta no geral. Mas o mesmo não se deve colocar relativamente à cultura, julgo eu. É claro que não me refiro à cultura no geral, porque o que comer, como comer e como cuidar do planeta, são actos culturais. São modos de fazer.
Estou a pensar nos modos de agir, comportamentos e o que se deve guardar para gerações futuras, em Moçambique, no que tange ao relacionamento humano, especificamente às relações entre mulheres e homens.
Abro um parêntesis, para contar uma alegria que tive no passado dia 18 de Novembro ao ler, entusiasmada, no 7MARGENS, o texto intitulado Biblioteca Apostólica do Vaticano dedica Agenda de 2021 à “mulher e os livros”, no qual se cita o cardeal português José Tolentino Mendonça como tendo referido que: “Não é possível fazer a história da Biblioteca dos Papas sem iluminar o contributo das mulheres”. Como este tributo, há muitos que têm sido feitos, embora ainda careçam de um efeito multiplicador.
E, já agora, falando em mulheres e em livros, escrevo, também, numa altura em que me encontro a fazer um prefácio a uma antologia de textos literários de mulheres, juntamente com Ana Mafalda Leite. Eu e ela, bem como Ana Rita Santiago, ambas docentes de literaturas; a primeira em Portugal e a segunda no Brasil, temos trabalhos nos quais recenseámos a existência de mulheres escritoras em Moçambique (nascidas no país e lusodescendentes), das quais pouco se fala e escreve. Aproveito este espaço para divulgar os nomes dessas escritoras e mais adiante, neste texto, explicarei a razão da sua invocação. Colocarei em itálico, os nomes das que me consta não estarem entre nós.
Escritoras com livros publicados: Cristiana Pereira; Invânea Mudanisse (Dama do Bling); Eliana N´zualo; Fátiama Langa; Sara Rosário; Sónia Sultuane; Silvia Bragança; Tatiana Pinto; Teresa Noronha; Amélia Matavele; Ana Mafalda Leite; Carla Soeiro; Celina Macome; Cláudia Chatonda Elija; Sara Feliciano (Deusa d´África); Énia Lipanga; Hirondina Joshua; Ivone Soares; Lica Sebastião; Márcia Santos (Rinkel); Melita Matshinhe; Nizete Monteiro; Tânia Tomé; Amilca Ismael; Clarice Machanguana; Yonesse Matshinhe (Cri Essência); Eunice Matavele; Helga Languana (Clássica); Ivone Machado (Npaiy); Lídia Mussá, Lúcia Baptista; Natália Constâncio (Dulcineia); Sadya Bulha; Sónia Jona; Teresa Taimo; Teresa Xavier Coito; Karina Jamal; Manuela Xavier; Paulina Chiziane; Virgília Ferrão; Lília Momplé; Isabel Gil; Tchanaze; Lídia Mathe; Flávia Changule; Felizmina Velho; Isabel Ferrão; Lina Magaia; Maira Andrade (Ginger Andra); Maria dos Anjos Martins; Maria Sorensen; Ana Paula Loureiro; Cláudia Constance; Clotilde Silva; Glória de Sant´Ana; Isa Manhique; Noémia de Sousa (Carolina Abranches,Vera Micaia); Angelina Neves, Margarida Abrantes, Paula Lovene e Tina Mucavele.
Outras há, sem livro, mas que publicam em diferentes plataformas digitais e/ou físicas como jornais e revistas: Carmita Sigaúque; Donia Tembe; Emília Alexandre; Geraldina Rafael, “Mª do Craveirinha”; Henriqueta Macuácua; Iyolanda de Jesus (Hera de Jesus); Yolanda Madeira (Xiduva Moiasse); Laize Sílvia dos Anjos; Nynna; Regineta Mário Chaúque; Saquina Badrudine Ismael; Açucena Esperança; Celestina Marques; Fátima Mimbirre; Ivete Mavie; Naty Ivo; Solange Macie; Alice Ambracer; Hermínia Francisco (Viandante Namukhotte) e Joyce Madime. Pode ser que este texto seja publicado num dia em que alguma das mulheres deste segundo grupo já tenham livro publicado – oxalá e ressalvo o erro.
Há muito mais mulheres, mas estas, aqui “mapeadas”, são as que trabalham a ficção e têm, na minha óptica, a obrigação de realizar a revolução que pretendemos no mundo, do ponto de vista cultural. Outras de outras áreas do saber e que escrevem sobre outras matérias factuais e que ainda não recenseei e outras ainda que também o devem fazer, ainda que oralmente. Obviamente que têm muito a deixar para a nossa educação. Mas, neste texto, o repto é lançado apenas às aludidas, porque há um devir que já poderia ter começado a estimular o imaginário dos nossos jovens; isto porque, o currículo escolar moçambicano, integra, desde 2004, nos seus conteúdos de ensino básico, a educação sobre “saberes tradicionais” moçambicanos; e julgo que, para complementar esse ensino, a ficção também deverá dar o seu contributo. O desafio é o que segue.
Têm estado a ser publicadas, no jornal domingo, um periódico moçambicano, sob a coordenação de Carol Banze, docente da Escola de Jornalismo em Maputo, imagens e textos atribuídos a certas anciãs, numa rubrica que se designa de Dicas da Vovó. Tive o grato prazer de conhecer a colunista, num breve telefonema no qual informou-me que está no prelo uma colectânea, em livro, com essas Dicas da Vovó. Devo esclarecer que as anciãs e os anciãos, na cultura e tradição bantu, são o símbolo do saber e do poder; por isso, em princípio, o que dizem é regra, é norma e ponto final. E ao se dedicar ao trabalho nessa coluna, a sua coordenadora traz-nos outras vozes, que nos podem ajudar a desmistificar as “nossas tradições”.
Sem desmerecer o trabalho das “vovós” e atendendo ainda à tónica que tenho dado nas minhas aulas sobre Cultura Moçambicana, a de que a análise das culturas deve ser sempre valorativa e nunca depreciativa, guardando excepções para casos nos quais se atente contra a dignidade humana, como por exemplo a excisão do clitóris da mulher ou os casamentos prematuros, os textos de que vou passar a falar são algo que precisa da nossa atenção, porque nuns momentos ajudam-nos na necessária mudança de mentalidades, noutro atiçam lume a fogueiras já existentes. Mas são claramente abordagens necessárias para debate e esclarecimento de algumas zonas de penumbra já implantadas pelo patriarcado. E explico porquê, dando alguns exemplos.
Devo referir ainda que as frases, no jornal domingo, vêm acompanhadas por um pequeno texto explicativo. Irei colocá-las em dois grupos: o primeiro, aquelas dirigidas à mulher; e o segundo, ao homem.
Do primeiro (1): a) “Algumas noras sentam-se de pernas cruzadas perante o sogro”, vovó Auneta Manhique; b) “Há maridos que (só) bebem para suportar a ‘boca’ das mulheres”; vovó Nora Albino; c) “É pesado quando uma mulher trai o marido”, vovó Marcelina Mundlovo; d) “Não deixe o marido ir ao serviço ‘de qualquer maneira’”, vovó Lídia Chaúque; e) “Dar comida dos take-aways ao marido é ‘falta de respeito’”, vovó Maria Desculpa Langa; f) “Nunca serás feliz por cima de lágrimas doutra mulher”, vovó Maria Mariquel; etc, etc.
Do segundo (2): a) “É feio o homem controlar a comida dentro de casa”, vovó Maria Manuel; b) “Cuidado com homens fofoqueiros”, vovó Julieta; c) “Há homens que induzem as esposas a desprezarem a família”, vovó Julieta; d) “Os genros da actualidade são fofinhos”, Vovó Alzira; e) “Homem que ‘pega’ muitas parceiras é fraco, vovó Joana Sitoe; f) “Homens são culpados pela existência de marhandzas”, vovó Maria Paulo (marhandzas são pessoas que estabelecem relacionamentos amorosos em troca de valores monetários ou de bens materiais).
Durante algum tempo verifiquei que feministas moçambicanas reclamavam sobre os ensinamentos das vovós. E, por saber que no nosso país, na região sul, o patriarcado é dominante, imaginei que as Dicas da Vovó só emitissem pareceres que ajudassem a perpetuar o machismo. Mas, do levantamento das poucas frases acima, pude constatar que elas educam tanto as mulheres quanto os homens.
Analisei algumas frases acima mencionadas, porque nem sempre os títulos sugerem o que, de facto, é depois explicado no próprio texto. À luz do preconizado pela cultura bantu, essas frases têm todas razão de ser e as “vovós” estão todas elas cobertas de razão. Entretanto, algumas delas atentam aos direitos humanos e à equidade de género; coisa que as vovós, naturalmente, devem ignorar. Todas as frases citadas (excepto a 1 f) nos revelam que é importante que se trabalhe para a mudança de mentalidades.
Acrescentando, diria que a frase 1 a) não tem o mesmo significado no contexto das sociedades patrilineares e nas sociedades matrilineares. Nas sociedades matrilineares, os homens, quando se casam é que vão à “casa” ou à “casa da família” da mulher, devendo muito respeito aos sogros; pelo que há muita generalização nela. Há também generalização na frase 2 f), se ela for analisada, tal e qual está referida no presente texto, mas nas Dicas da Vovó, a sua autora explica que tanto homens quanto mulheres têm sido marhrandzas; o que de um modo geral, constitui a verdade.
Juntar esses diferentes tipos de frases revelou-me uma mudança de paradigma nas vovós. Porque elas não só se dirigem às mulheres, quanto também se dirigem aos homens. Mas devo dizer que a sua linguagem parece mais feroz, quando se trata de se dirigirem às mulheres, porque utilizam palavras como “é pecado”, “é pesado”, é falta de respeito, “boca” versus as dirigidas aos homens: “feio”, “fofinhos”, “pega”. Isto leva-me a concluir que há ainda resquícios de patriarcado nas suas palavras. Entretanto, elas revelam alguma mudança de mentalidade, por serem, também, ligeiramente ríspidas para os homens, colocando-os em xeque, alterando a ideia de que eles são os donos e senhores das mulheres.
Devo, entretanto, dizer em abono da verdade que algumas dessas frases fazem parte da cultura universal, como por exemplo a 1. f). E certamente que outras haverá, se folhearmos o livro de Carol Banze. O que concluo é que, as anciãs têm estado a tentar sujeitar-se ao contexto e a adequarem a sua forma de educar ao momento actual e que o trabalho de recolha dos seus saberes pode ser aproveitado pelas escritoras moçambicanas, para contribuírem, no âmbito da ficção, com textos que, conjuntamente com os “saberes tradicionais”, ensinados nas escolas, possam ajudar a educar o imaginário das crianças e dos jovens moçambicanos.
*Antes publicado no 7 maregens
Sara Jona Laisse é docente de Cultura Moçambicana na Universidade Politécnica, em Maputo. Membro do Graal-Movimento Internacional de Mulheres cristãs. Contacto: [email protected].