Por Aníbal Aleluia
Discussão ociosa a daqueles adolescentes sobre quem seria socialmente mais útil, se o médico, se o professor. Enalteciam uns o papel do primeiro porque, obstetra, pediatra, cirurgião, internista ou gerontologista, cuida do Homem, do seu arcaboiço, da sua carne e nervos. Objectavam os outros apontando que para chegar a ser especialista, o primeiro tinha passado pela escola. Que vocação, inteligência e aplicação, tudo estava condicionado aos cuidados do mestre escola.
Debate tendencioso, inquinado de emotividade, pois todos os participantes eram alunos do curso de Magistério. Quem pode infirmar Junqueiro que a afirmou:«O homem é a profissão: o sapateiro pensa nos sapatos e o camiseiro nas camisas?»?
A quem ensinaria o professor se os cuidados pré-natais não é evitassem um aborto?
Estava-se nos anos 35/37. E a história era a mesma: qual primeiro? O ovo ou a galinha?
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Em 47 gatafunho o meu primeiro artigo para o Itinerário. Título: «Sobre a lei de participação de Lévy Bruhl». Na euforia juvenil, escrevo entre outras coisas mais ou menos: «para a promover o progresso de um povo, basta fazer a sua transformação mental».
Recebo uma reprimenda de uma pessoa amiga: «Em primeiro lugar a situação económica: todo o processo histórico se subordina às condições materiais».
Eu tinha lido também o Juan Zamora. Mas nunca encarei o Homem como um ser semelhante a um irracional. Sempre encontrei nele um ser duplex, como os filósofos já o haviam designado.
O que distingue o homem é a sua capacidade de dominar o próprio cérebro, obrigando-o a servi-lo não se limitando, por isso, à rotina do instinto ou ao comando mecânico. A possibilidade de se impor um programa, a vantagem de planificar, a oportunidade de alterar corrigir ou aperfeiçoar é que fazem dele o propulsor do Progresso, o agente da História, o fautor da Civilização.
Por isso, «o Homem é a profissão».
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Ilação lógica: eu tinha razão como a minha amável contraditora. Porque, ser duplex, como ser material é suporte de algo imaterial: sentimentos, ideias, projectos, faculdade volitiva.
No fundo tudo isto visa capacitar o Homem para o trabalho. Contudo, seria prudente ninguém sobrefacturar na sua profissão, como faziam os jovens da minha Escola nos anos 35 37. Não existe no mundo uma única classe, laboral ou social, que dispense o concurso de elementos de outras classes.
Foi pensando assim que o Dr. Toulouse afirmou que, em certa medida, o varredor de ruas contribui mais para a saúde pública do que o médico. É que há mais uma inegável interdependência na vida dos homens[i].
Infelizmente este sentimento anda arredio de certos profissionais. Até o demagogo, ao dizer «nós» frequentemente pensa em si apenas, pois a sua imagem do mundo é dicotómica, vendo a sociedade constituída por «homens que mandam e homens que são mandados», como a afirmava Bordeau[ii].
É essa a pedagogia dominante. Nalgumas profissões, naquelas que podem influenciar decisões, naquelas que podem influenciar decisões importantes, a tentação da sobrevalorização é inelutável. Investigadores, escritores, agentes de autoridade, inventores, com ou sem pergaminhos, muitas vezes impam de filáucia devido à sua profissão.
E que dizer quando essa profissionalização é duvidosa? A quem iludirão com o seu pavonear ridículo?
O investigador, o escritor, o agente da autoridade, o inventor, não prescindem da colaboração do sapateiro, do lavadeiro, do criado, engraxador, do varredor de ruas, de outros mais. Não se bastam a si mesmos. Por isso será de bom aviso àquele que abraça uma carreira capaz de influenciar a sociedade de se lembrar que embora o sapateiro pense nos sapatos de igual modo pensa neles aquele que tem o salto partido ou as gáspeas rotas.
[i] In “Sociologia”
[ii] In “Como se forma uma inteligência”
Breve Biografia
Aníbal Henrique Aleluía foi ficcionista e jornalista moçambicano. Nasceu em 1926 em Inhambane. Faleceu em 1993, em Maputo. Exerceu diversas profissões, desde aprendiz de caixeiro, funcionário administrativo, enfermeiro, solicitador de entre várias outras. Colaborou no Itinerário, O Brado Africano, A Voz de Moçambique, Tempo, Vértice.
Aníbal Aleluia publicou em 1987 MBELELE E OUTROS CONTOS, O GAJO E OS OUTROS, e em edição póstuma CONTOS FANTÁSTICOS.