Insular, a Utopia de Aline Frazão?

A poesia sem ritmo dilui-se em meras palavras. Não deixa de ser um silêncio desrespeitado. Quando a poesia ganha a forma de música pode transforma-se no mar, na praia em verão de quem há muito vive recluso no inverno interior, trancado nos labirintos existenciais das ilhas que somos.

No álbum Movimento (2013), a cantora angolana Aline Frazão já cruzava a poesia e a música através de letras literárias e uma cena – não sei o quê – que remete a construção lírica do Rap.

O estilo da sua escrita continua a luxuosa tradição angolana de Waldemar Bastos, Filipe Mukenga. E revela ter bebido do poço brasileiro de Chico Buarque, Milton Nascimento e muito provavelmente o João Gilberto. Mas a jovem de 1988 pertence a outra geração, esta de Dino Ferraz, Toty Sa’ Med e companhia.

Em “Insular” (2015), seu terceiro álbum – o primeiro foi “Clave Bantu” (2011) – segue com esse apuramento da imagem e introduz elementos eletrónicos no instrumental que antes eram essencialmente acústicos. Na altura do lançamento a DW escreveu “nesta viagem encontramos uma nova Aline Frazão, afastada do cunho da world music, mas que, no fundo, se mantém a mesma”.

Em Outubro de 2016, quando esteve em Maputo, numa conversa na Fundação Fernando Leite Couto, a cantora disse que entre as suas referências literárias estão Eduardo White e Mia Couto. E que se sente particularmente seduzida pela escrita de Luís Carlos Patraquim. A semelhança deste último, Frazão tende para uma direcção mais enigmática no que canta. Não é o obvia.

Ao longo dos 45 minutos que duram as onze faixas é evidente a forte e acentuada componente crítica ao sistema político então vigente. “Prosa da situação”, “Só silêncio”, “A louca” são os exemplos mais escancarados.

Aline Frazão

O exercício da crítica – Paulina Chiziane é outra referência de Frazão – se estende quando dedica a música “Langidila” a Deolinda Rodrigues, guerrilheira do MPLA, assassinada na luta pela independência de Angola. É um resgate a uma figura quase esquecida da esfera pública porque ignorada pelos actualizadores do passado – entres os quais, os opinion makers. É também recordar que a história é feita de heroínas não apenas de heróis.

Pelo momento político que Angola atravessava quando o álbum veio a superfície, trazer, recordar uma voz critica, como a Deolinda, era uma afronta ao sistema. Pois, como Aline descreveu em várias entrevistas era uma mulher “honesta, muito inteligente, muito à frente do seu tempo” que não se calava nem dentro do MPLA. Este contexto traz a baila aquela velha discussão: «estética vs política». As circunstâncias talvez também justifiquem o porquê de letras tão codificadas. A hegemonia zéduardiana reprimia vozes contrárias. Entretanto, como se sabe, querer peneirar o que os artistas produzem é como que tentar parar o vento com as mãos. O poema “Let my people go”, de Noémia de Sousa esclarece qualquer equívoco nessa questão.

Recuperemos “Prosa da situação”. Aline Frazão compara a República Angolana a uma monarquia. “O noticiário abriu outra vez/anunciaram que o ouro azul deste chão tem dono/ o Rei fala e quando o Rei fala/O reino cala”.  E quem não se cala, quem tem uma opinião contraria, esclarece Aline que evite expor, pois neste reino dança quem não aplaude a prosa da situação.

Os elementos eletrónicos, numa arquitetura minimalista, não tiram a centralidade da guitarra. E com as texturas que vai introduzindo na música “A louca”, por exemplo, coloca Aline nesta linha que hoje questiona o que é música, qual é o limite? De certeza que não é a guitarra, o baixo, a bateria, o saxofone, o piano e todo arsenal tradicional. O mais importante é o efeito do som.

“Insular”, álbum que encerra com “Susana”, cantada em quimbundo temperada com o violão do genial Toty Sa’ Med, músico angolano, foi gravado numa pequena ilha, Jura, na Escócia, ao lado de Giles Perring. Um detalhe aqui salta-me a vista nos autores clássicos da tradição da Utopia, a terra prometida é invariavelmente numa ilha desde Timaeus, a República e Critias de Platão até Tómas Morus e mais adiante a ilha funciona como uma espécie de paraíso. É para lá que todos queremos ir. E embora seja de queixas, é um álbum de esperança.  

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