Textos de Ingrid Morandian
Maria das Sentenças
do corredor o hálito quente do quarto
recaía em suas pernas
ela não migrou seus sonhos para os olhos
naquela manhã
o entorno absorvia o silêncio preso nos lençóis,
uma alegoria
ela seguiu atrás da realidade posta
nos móveis da sala
passaporte para mundos outros
prelúdio
a água escorria para a chaleira
respingando gotas na pia,
o silêncio abrandava cedendo à realidade
os utensílios da cozinha
a luz rasgava num solo pelas janelas,
entrevendo o bordado do dia
ela mexia com a colher de pau os restos
de sonhos que esvaziaram na madrugada
seus olhos de Pietá marulhavam
O último caminhante do vagão
naquela noite não havia estrelas – um céu nebuloso e absurdo
de lua nova
os calcanhares do último caminhante
redesenhavam as ruas paralelas,
um archote nos olhos dos passantes tremeluzia
sentiu saudades da terra molhada,
da infância encadernada na memória,
o pai cavoucando o solo,
a aragem da manhã na pele,
o gosto de vida e suor na camisa
o asfalto é o refúgio das sombras
o trem lida com o cansaço dos passageiros,
o caos sazonal,
e palavras de sangue
o último caminhante do vagão
abocanha os passos espatifados
na plataforma
debruçados, seus olhos nas vidraças do trem
anteveem o reflexo de rostos,
bolsas,
braços caídos
e melancolia
as horas amortecidas nos simulacros do esquecimento
embaraçam as tristezas do último caminhante,
pensaria com assombro na noite avançando na superfície,
e sua condição amparada por uma sacola de pães, moedas
– solidão
os olhos apertados de sono apalpam as horas,
o regresso desconhecia onde terminavam os trilhos
Ewá
o que mais me assombra na tempestade
são os resíduos de lágrimas que ficam na pele,
a natureza perfila nas janelas do quarto gotículas
escorrendo sinuosas
ergo os braços para a chuva pedindo a imanência dos tempos
para que brotem fecundas minhas pernas
os mundos do meu corpo confirmam
as histórias contadas da mãe afro
nasci Ewá
nasci no rio bordado de solitude
fiz-me continente na ária,
acolhimento das mãos sôfregas
Um dia
por vezes infinitas andarilhei
pelas pernas da Rita
acendi aquele cigarro-canela
na tarde embolorada de sábado
perturbada com a leitura de Beckett
catei folhas da calçada, catei gritos
e alguns poemas do abismo
amasso todos os recados de Rita
ainda ecoando abafados
das pernas da Rita inaugurei
o sexo agridoce
reinventando um país oblíquo-distorcido
Rita
perene o olhar na cidade
as ruas mouras e turvas
dentro da íris, um dia coube
a imensidão do silêncio
soltando navios
um dia coube, dentro do rosto
um punhado de chuva
na boca da Rita
***
Ingrid Morandian nasceu em São Paulo(SP), onde reside. Participou de várias antologias. Publicações: Água Terra Fogo Ar – Crônicas elementais, Editora Uapê, 2011 – História intima da leitura, Editora Vagamundo, 2012 – Revista Plural 1900 e Revista Plural La barca, 2016, Editora Scenarium Livros Artesanais – Senhoras Obscenas, 2016, Editora Benfazeja. Tem poemas publicadosnas revistas eletrônicas Mallarmargens, Diversos Afins, Liberoamérica. Publicou pela Editora Patuá, Se você me amasse, teria fechado os olhos, 2019.