Fragmentos de um fim (I)

Havia claridade naquela noite de meados de Agosto. A lua imperava com a sua brancura acinzentada sobre os becos, ruelas, ruas e avenidas da cidade. Noutras, com mais prédios ao redor, não atingia o cimento e alguma areia dos passeios esburacados.

Eugénio descia a Vladimir Lenine, a atravessar a esquina com Ahmed Sékou Touré, do lado oposto às bombas de combustível, com os pensamentos a vaguearem por diferentes latitudes num movimento que ele próprio não tinha controle, era como quando ouve estações de rádio e, repentinamente, a tocar “Léo” de Milton Nascimento, música que muito curte, o locutor interrompe para dizer sabe-se lá o quê.

Nesse emaranhado, ao guardar o celular no bolso, recordou-se de passar ali de mãos dadas com ela, no mesmo ponto, ao lado da Escola Industrial, muitas vezes por volta das 11.00 horas com um sol imponente, ainda nos anos da faculdade. Ela, a mãe da Luandly Penélope – Eugénio, o pai nunca esqueceu a Odisseia que foi a aventura de Ulisses – sempre atenta a essas coisas muito inhas, chamava-o a atenção para contemplar a Katembe para lá do estuário Espírito Santo.

O incômodo no dedo anelar da mão direita que se deve aos quilos que acumulou nos últimos meses, o traz de volta ao seu corpo. É uma sensação real. Levanta a mão ao alcance dos olhos. Repara, enquanto caminha, no formato circular do anel de prata, esse simbolismo de eternidade. “O círculo não tem começo e fim”, pensa e sorri, o que considera uma ironia.

Nos auriculares ouve “Witch Doctor’s letter” de Ildo Nandja. Parou, por alguns segundos, sacou o IPhone do bolso, desbloqueou o écran com o olhar, na esperança de receber uma mensagem dela. Segurava-se para não escrever-lhe uma mensagem ou liga-la. Abre o Spotify e reproduz, assim que termina Nandja, “Estrelar” de Marcos Valle.

O Manuel, provavelmente o waiter mais velho do Califórnia, ao vê-lo entrar, com o ar aéreo, se apressou com a bandeja que trazia o líquido dourado com bolinhas a subir que se parecem com pequenos diamantes ou sei lá, qualquer coisa que prendia a atenção do Eugénio logo que visse o copo transparente, gelado de coroa branca. O Manuel acha graça, daí a sua atenção com o assíduo cliente. – Tá boa, meu mano Manu! Como é que é, estás bem? – pergunta, com rosto alegre, o Eugénio. – Estou fixe, Boss. Andou desaparecido, soltou o Manuel. – Nessa correria as vezes a gente tropeça. Mas cá estamos, só aceito tão gelada quanto esta.

O pai da Luandly Penélope, assim que Manuel deu as costas para atender uma mesa mais no interior do pub, lembrou-se do primeiro olhar da mãe da sua primogénita: ela de jeans a encher as calças, blusa preta, mochila nas costas, mexas de linha, a entrar no chapa. Brotou. Ali. Naquele instante. Brotou a semente de uma vida naquele instante. Eugénio, por longos anos, não viu outra mulher senão essa no seu raio periférico, mais ou menos como Jango, numa das cenas do interior do pub. Ele era um menino e ela também era uma menina. Sonharam as suas profissões, combinaram planos, fizeram projectos e Eugénio, crente naquilo, correu para ser o melhor da sua área.

Pega no IPhone para se distrair, as lembranças recuperam uma fotografia antiga, da transição do ano, quer postar no Instagram e acompanha-la com a seguinte legenda: “É como, na noite escura no alto das montanhas, no Pequenos Libombos, ver a luz dos vagalumes que cantam, como se, de propósito, dissessem um poema.” Desiste. Repousa o telemóvel na mesa.

Cascata de cerveja é o que se parece a sua garganta. Sente o corpo a vacilar. Zululuane. Respira fundo, a mão não chega a tempo de cobrir a boca que arrota com volume bossal. Não sabe se o gesto foi um aceno. O certo é que Manuel veio ter com a conta e PUS. – Inclui este café na conta, Boss – disse o waiter entregando a chicara de café com o seu aroma a seduzir Eugénio. Sorri, agradece o gesto, recupera o fôlego e toma o café sem açúcar. Recupera, depois de devolver o cartão a carteira, o IPhone, vê as notificações do Facebook, entre as oito notificações, uma é de memória. É a lembrança da viagem para a Ilha. Foi tão bonito. «Parvo como estes dispositivos são incapazes de recordar as nossas sensações, isso só a vida mesmo», ouve de uma voz interior que não quer aceitar que as suas redes sociais e o seu smartphone o governam.

Repara, enquanto caminha, no formato circular do anel de prata, esse simbolismo de eternidade. “O círculo não tem começo e fim”, pensa e sorri, o que considera uma ironia.

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